segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Está tudo errado, Abigail





Conforme-se, Abigail. Digite alguns números na urna. Certifique-se que o rosto sorridente na tela corresponde ao número digitado. Pressione a tecla “confirma” e vá para casa assistir o Faustão. Amanhã trabalhará satisfeita por ter participado de mais uma festa patriótica.

Mas e pós-eleição, Abigail? Que meios você dispõe para garantir que o candidato sorridente cumprirá o prometido? Você terá acesso ao deputado eleito? O deputado, eleito, ainda vai sorrir para você?

Eleição após eleição, mandato após mandato, você perceberá que candidato é candidato, deputado é deputado e você é você.

Conclui que, ao escolher, você não escolhe. Conclui que tem cada vez farinha no mesmo saco. Conclui que não conclui mais nada e que já passou a hora de chutar o balde.


Vem pra Rua

Se a revolta individual coincide com a revolta coletiva, você se une a tantas outras Abigails e sai aos berros pelas ruas. Sacode a poeira, estende faixas, agita bandeiras, repete suas palavas de ordem.


Mas o pouco que será dito não será ouvido.  O poder está com as orelhas entupidas de arrogância e notas de 100. E ainda vai lhe descer o porrete por reclamar de barriga cheia.

Aos poucos você entenderá que palavras de ordem e faixas de protesto não podem resumir o sentimento real - aquela revolta represada, a sensação da constante presença de um opressor invisível.

E você verá as ruas começarem a se esvaziar de idéias para novamente se entupirem de sacolas de compras.


Boxed - Kirsten Green

10% de Democracia

A Democracia foi inventada na Grécia antiga, mas, feitas bem as contas, concluiremos que apenas dez por cento dos gregos eram realmente beneficiados pelo sistema.


A cidadania democrática alcançava apenas filhos homens de atenienses maiores de 21 anos. Estrangeiros, escravos e mulheres não participavam da vida política.

Cada época com seus marginalizados do poder, mas a democracia dos dez por cento se perpetua. Escravos tornaram-se bancários, tornaram-se vendedores, engenheiros, médicos e catadores de papelão.

Agora certas regalias lhe são permitidas. Já não é produtivo que se mantenha Abigail dezoito horas por dia no trabalho. É conveniente que ela supra suas necessidades básicas (quando possível, se não onerar a empresa).

Para alguns, as velhas necessidades de água, pão e moradia já foram supridas. A esses se estimula o acesso a algum luxo. Vende-se um arremedo de glamour do poder, garante-se o lubrificante da máquina de supérfluos e futilidades.

Porque somente assim o mundo continuará a girar, a sacudir e regurgitar.

Então o grupo bem alimentado de escravos é apresentado às suas mais novas necessidades.

Que se estimulem a vaidade e a competição!

É necessário ser mais bonito do que o vizinho!

É necessário ser o mais forte, o mais rico, o mais veloz, o mais hi-tech!

E o grupo de escravos adestrados congestiona as escadas rolantes do shopping center, as agências de viagem, as clínicas de cirurgia plástica e o 48º salão de tecnologia do ano.

Exultam os senhores do consumo, aperfeiçoam-se os tapa-buracos de nossa auto-estima.


Para quem?

Ninguém realmente escolheu viver assim, não nos deram escolha. Nunca houve democracia. Nem no país de Abigail nem no país de Abraham Lincoln, que assim a definiu: “Governo do povo, pelo povo e paro o povo".

O cidadão americano está tão distante do poder quanto o afegão e o dinamarquês. Porque tudo começa, não na Dinamarca, mas nas carteiras das salas de aula, onde aprendemos aquela frase de Lincoln.

O professor repete um discurso que aprendeu de outro professor, que aprendeu de outro professor que aprendeu de outro professor que aprendeu com uma tia do Maranhão.

O discurso tem apenas um objetivo: descrever a estabelecida realidade social como única realidade possível.

Agora mesmo, em alguma sala de aula, a pobre e sonolenta cabecinha de uma Abigail qualquer assimila uma realidade estática. A organização social é dita imutável, encaixada na ordem natural das coisas. E quem é que vai contestar a natureza?

A pobre cabecinha na sala de aula não questiona se professor e cartilha falam a verdade. Abigail foi mandada à escola para aprender e ela aprende. Aquela gente e aqueles livros devem saber do que estão falando.

Quando a cartilha mostra o operário voltando para casa ao final dia, cansado, suado e feliz, só resta acreditar que o mundo está perfeito do jeitinho que está.



É a natureza das coisas

A cabecinha de Abigail leva pela vida a ideia de que é natural que o pai trabalhe 10 horas para fabricar uma cadeira. É natural que essa cadeira seja vendida pelo mesmo valor do salário mensal do pai. É natural que ele não conheça os planos da empresa. É natural que não saiba se a empresa vai fechar as portas amanhã, se vai continuar a produzir aquelas cadeiras tão especiais que valem mais do que um homem.

Você aprendeu, pobre Abigail, assim é a tal democracia. É assim que é. Só assim pode ser.

Agora, pense bem, Abigail (não que você não tenha pensado, mas repense): pensar não é possível.

Pensamos que pensamos o que pensamos, mas pensamos o que nos ensinaram a pensar.

Porque alardeando essas tais democracias, o poder retirou sua liberdade de pensamento. A minha também, não se preocupe.




Armas sutis

O poder há muito percebeu que o cultivo de pensamentos padrões seria mais eficiente para a manutenção dessas águas estagnadas do que o uso da força bruta (alternativa hoje reservada ao plano B).


O método é infalível. Basta entortar o galho ainda tenro para que a realidade vigente se torne a única realidade possível. A árvore, já frondosa, vai se encarregar de passar à frente os frutos do pensamento padrão.

Atravessamos os milênios, eu, você e a humanidade, mas continuamos a anos-luz de distância de qualquer vestígio de democracia. Que se dirá de uma sociedade perfeita  baseada na solidariedade, com o objetivo de bem comum, guiada pela bom senso?

Está tudo errado, Abigail, e o jeito de dizer é um só: está tudo errado.

A democracia dos dez por cento se perpetua. E eles continuam a afirmar que todos vivemos sob a divina luz da liberdade.


Santos de casa

Nos últimos tempos, aqui, no nosso pequeno grande Brasil, também resolveram nos dar a chance de escolher entre aqueles que escolherão por nós.

Você os conhece, Abigail. Ou pensa que os conhece. Dê uma olhada no cardápio:

Temos a candidata da situação, que pertence a um partido que tinha por origem a contestação da ordem então estabelecida. O partido trocou ideologia por poder, rendeu-se a conluios e estabeleceu-se na velha ordem. Maquiavel bateria palmas.

Temos a candidata que saiu do partido da situação porque estava à esquerda do partido da situação e foi parar à direita do partido da situação. Aprendeu com as origens e foi mais ágil. Não esperou muito para se associar aos ratos. Mas fala umas palavras bonitas que só.

O terceiro mais cotado surge como dublê de playboy e herói da mídia. Seu discurso moralizante não convence. Convém pesquisar sobre a associação com o tráfico de drogas - acusação que permeia sua carreira política. O partido é conhecido e provado (eu disse provado, Abigail, não aprovado). Arrocho salarial e preços congelados no pico. Não acredito que você queira repetir a dose de recessão. Você não gostaria de assistir, mais uma vez, a empáfia dos tecnocratas.

O candidato verde propõe discussões polêmicas, tais como legalização da maconha e do aborto. O seu leque de coligações nos estados abre-se da esquerda para a direita numa maçaroca de não-ideologias. Cenário perfeito para que qualquer discussão se esvaia.

Temos a candidata que diz a “verdade” (ou a verdade mais óbvia). Essa, para os românticos, a possibilidade de um discurso mais revolucionário. Para os desiludidos, mais do mesmo (já viram esse filme representado pela candidata da situação.)


Fúria Cidadã

O cardápio se estende, Abigail, mas no fundo nada disso importa. As manifestações de junho de 2013 não foram compreendidas (provavelmente nem mesmo pelos participantes).


Ou será, Abigail, que você saberia explicar aquela luz seguida de fúria que às vezes vem dos subterrâneos do seu pensamento, do seu pré-pensamento, com origem naqueles poucos anos de liberdade que você viveu antes de ser adestrada?

É quando você sente que algo se rompe. Você tem um insight. Você quase se lembra de quem você é. Quase compreende que não está na Terra para se ajoelhar para os que da Terra se apossaram.

Então, semi-consciente do estado de adestramento, você quase compreende e resolve expressar: está tudo errado.

Você sai às ruas. E grita. E se anima. Quebra a porta de um banco, apanha por destruir o patrimônio sagrado do poder.

Você faz planos. Vai organizar greves, inflamar-se sobre a mesa do escritório, puxar a gravata do chefe e dizer, bem de perto, que está partindo para mudar o mundo.

Mas é impossível mudar qualquer coisa quando não sabemos que coisa é essa que queremos mudar.


O que você quer afinal?

Afinal, Abigail, quais são mesmo suas solicitações?

Quer que sua voz tenha a força da voz do presidente, do chefe, do banqueiro, do jornalista, do Pavarotti?

Quer discutir, em iguais condições, a perversa distribuição de renda no país (ou no mundo)?

Quer que um salário máximo seja estipulado?

Quer trabalhar no que quiser, quando quiser e se quiser?

Quer discutir preços com o dono do supermercado, juros com o banqueiro, futebol com o Pelé?

Você quer muito, Abigail, mas nem sabe o que poderia querer. Porque a revolta se mostra difusa, vem em lampejos e imprecisões.

Como pode você expressar, não o pensamento, mas a intuição que se origina no seu pré-adestramento?

Lá, onde muitas realidades estavam abertas e latentes.

Lá, onde uma vaca podia ser verde, o pai era o homem mais poderoso do mundo e a vida era um emaranhado de possibilidades.

Depois disseram que não. Que uma vaca verde ficaria ridícula, e que seu pai não era o homem mais poderoso do mundo. Ele apenas fabricava as cadeiras para as bundas do poder.

Disseram que é natural que um homem doe trinta, quarenta anos de sua vida para que outro colha o fruto de seu trabalho.

Disseram que nada pode ser mudado, disseram que a vida é questão de aceitação.
Pawel Kuczynski
Vacas verdinhas

Querida Abigail, a vaca só não é verde porque ninguém a pintou assim.


Certamente, para você, seu pai ainda é o homem mais poderoso do mundo.

Por isso, sem sugestão melhor a fazer, venho convidá-los, você e seu pai, a transformarmos juntos esta realidade.

Livremo-nos, os três, da coleira do adestrador e das ilusões do empório de futilidades. Saiamos por aí, em busca de realidades esquecidas.

Munidos de aquarelas e lápis de cor, ousadias e esperanças, em pé sobre a cadeira dos poderosos, pintaremos de verde as vacas deste mundo.