sábado, 14 de novembro de 2015

Paris - A Fachada do Caos



Seria chover no molhado dizer que os atentados em Paris representam apenas a ponta do iceberg de uma sociedade doente. Para encontrar a causa da doença, basta dar uma olhada alguns palmos à frente do nariz.

O desrespeito às diferenças, a intolerância entre classes, gêneros, cores, etnias, religiões, nacionalidades, opiniões e posições políticas apresenta-se como pano de fundo para essa onda de caos, violência e morte.

Prisioneiros deste ciclo vicioso, já conhecemos as próximas medidas.
  • O governo francês já fechou as fronteiras. Ninguém entra, ninguém sai.
  • O cerco aos imigrantes vai se intensificar. Aqueles de origem árabe, que já eram tratados como suspeitos, agora serão tratados como virtuais culpados.
  • Ameaças de retaliação já pipocam aqui e ali.
  • Estados Unidos e países da Europa vão usar o episódio para justificar ataques a países muçulmanos. Vítimas inocentes receberão solenes pedidos de desculpa.
Não existem mocinhos e bandidos nessa guerra. É preciso apenas não cair na tentação de observar apenas um dos lados da trincheira.

A comoção com as mortes de Paris é legítima, mas convém lembrar que a comoção apenas existe porque as mortes estão nas manchetes.

Recentemente o Estado Islâmico matou 300 Yazídis, membros de uma minoria religiosa no Iraque.

Em 2014, o Estado Islâmico matou mais de 9000 de pessoas no mesmo país.

Durante os ataques de janeiro ao jornal parisiense Charlie Hebdo, mais de 2000 pessoas foram massacradas na Nigéria pelo grupo Boka Haran.

Temos nossos mortos de Mariana, a extinção do ecossistema, a ganância de uma empresa, mas foram os franceses que comoveram o mundo. Porque eram os franceses que estavam nas manchetes.


Santos do Pau Oco

O general francês Paul Aussaresses, que lançou um livro defendendo os casos de tortura contra o movimento independentista da Argélia, deu o seguinte depoimento ao Le Monde: 

"É uma coisa eficaz, a tortura. A maior parte das pessoas não aguentava, elas revelavam tudo o que sabiam. A seguir, nos as matávamos. (...) Se isso me deu problemas de consciência? Devo dizer que não."

Os Estados Unidos mantêm um campo de concentração em Guantanamo, assassinam milhares de pessoas no oriente, patrocinam e derrubam ditaduras, eliminam inimigos sem julgamento, invadem e destroem países inteiros, utilizam drones autorizados a “decidir” quais alvos devem ser atingidos. 

Sempre é bom lembrar que tanto o Estado Islâmico quanto o A-Qaeda receberam apoio e armamento americano em suas origens.

A violação dos direitos humanos praticada mundo afora por governos americanos e europeus cabe em uma nota de jornal. As vítimas não são choradas por aqui.

No Brasil, já havíamos implantado a revolta seletiva. Agora estamos aderindo à comoção seletiva, às lágrimas guiadas por nacionalidades e apresentadores de telejornal.


Faroeste Caboclo

Os recentes atentados em Paris representam apenas os reflexos do tipo de sociedade que a aldeia global parece defender.

Cada vez mais se ouvem manifestações em favor do uso da força, da brutalidade, da punição, do “direito” de usar armas.

Cada vez mais se tolera a prática da tortura, do constrangimento, da prepotência, das mortes por resistência à prisão, dos julgamentos baseados em cor e classe social.

Cada vez mais se aplaudem linchamentos sumários.

Cada vez mais queremos combater o mal com o mal.


Ameaça do Agora

“Não se pode esperar o mundo mudar” – argumentam aqueles que se pronunciam pelo uso de armas – “Minha família está ameaçada agora. É agora que eu preciso me defender”.

Ignorem-se os dados que demonstram que o uso de armas pelo cidadão comum aumenta consideravelmente o número de mortes (incluindo-se aí acidentes com crianças, brigas entre casais e fechadas no trânsito).

Ignore-se tudo isso, porque números não deveriam ser usados para falar de vidas.

Apenas reflita a respeito do caminho que estamos percorrendo. Para onde nos dirigimos? 

Sim, existe uma ameaça real agora. Pode ter alguém armado lá fora. Não abra a porta.

Mas esse agora não é de agora. Há muito tempo que as gerações pensam apenas no presente, e se esquecem das que estão por vir. A indústria das armas agradece.

O pior (nosso país como exemplo) é que em todas essas questões tendemos a caminhar para trás. 

Enquanto os Estados Unidos discutem a redução do porte de armas, aqui se defende exatamente o contrário. (O tema é constrangedor para Obama – aquele que lança mísseis sobre escolas e hospitais.)

Há pouco ouviu-se uma manifestação enfática a favor da redução da maioridade penal. Afinal é preciso fazer algo agora contra esses delinquentes, não é?

A melhor solução, clara e lógica, é trancafiar trombadinhas junto com criminosos profissionais. 

Não importa se assim teremos mais crimes, não importa se perdemos a oportunidade de recuperar jovens, não importa que estejamos marchando rumo à barbárie.

 
Meninos em Luta

Mas onde estão esses manifestantes no momento em que crianças e adolescente resistem nas escolas fechadas em São Paulo? 

Quem se levanta para apoiar os representantes de uma geração que lutam agora pelo agora do futuro? 

Quem se indigna com a truculência do Estado contra meninos que apenas exigem seu direito à educação?


Contra os Moinhos de Vento

A guerra ao tráfico é outra guerra perdida. E perdeu-se por ter sido travada com cavalares doses de burrice, arrogância e preconceito. Mas ainda se pensa que governos devem ter o poder de interferir na vida pessoal de cada cidadão, tratando-o como incapaz de decidir o que lhe convém.

Não seria mais civilizado e humano se o Estado controlasse a distribuição de entorpecentes e tratasse os casos de dependência como questão de saúde pública? Não é assim com álcool, tabaco e os sedutores tarjas pretas?

A guerra ao tráfico gerou crimes e criminosos que não existiriam se nunca houvesse sido travada.
 

Depois a Gente Vê

Nunca se começa nada. A educação fica para o futuro. A redução das diferenças entre classes acontecerá naturalmente, quando Deus estiver de bom humor.

Não seria mais sábio começar a preparar o mundo para as próximas gerações? O que precisamos é permitir às crianças e jovens que se iluminem para algumas evidências:
  • Todos os homens são iguais. 
  • Nacionalidades são apenas rótulos territoriais. 
  • Religiões são apenas meios de chegar ao mesmo lugar. 
  • Fanáticos não as representam.
  • A Terra não tem dono, a Terra é a casa de todos que aqui nasceram.
  • Todos tem o sagrado direito de ir e vir aonde lhes der na telha. 
  • Fronteiras simbolizam a falência da civilização.

Para onde, José, para onde?

Por isso a pergunta permanece: para onde queremos ir, que caminho queremos percorrer? 

Devemos mesmo insistir nas trilha da ira e da vingança, devemos mesmo utilizar as armas do mal para combater o mal? 

Assistiremos impassíveis à contagem das próximas vítimas, desde que não sejam cidadãos europeus ou americanos?

Se continuarmos na política do olho por olho, dente por dente, nosso destino já está selado: acabaremos todos cegos e banguelas.