segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Novo #36 do Pedaço



Sexta-feira passada aconteceu o 1º GP João Henrique de Motocross, prova comemorativa ao aniversário do sobrinho-neto deste desengonçado corujão.


Não sei se por cerveja, pieguice ou saudade antecipada, ocorreu-me um súbito pensamento durante a festa:

Pode um desengonçadinho de um ano de idade e bochechas vermelhas ter fé? Em que será que ele acredita?

Eu sei que um dia JH vai saber dos pensamentos esquisitos do tio-avô, mas uma dúvida como essa não pode esperar tanto tempo, nem ficar sem resposta - não depois daquelas cervejas.


Além do mais, havia oportunidade melhor para perguntar ao próprio JH, em pessoinha?

Convenci-o a deixar a piscina de bolinhas com um argumento infalível. Disse que tinha um armário inteirinho, de portas bem abertas, cheio de badulaques, só para ele mexer.

Depois de me desculpar pela mentira e me certificar de que ninguém ouvia, sussurrei a inadiável pergunta:

- João, netinho do tio, sobrinho do vô, tu tem fé?

João me olhou por alguns segundos. Refletiu, apontou para os armários fechados, balançou o dedinho, coçou a orelha.


Uma pergunta como aquela merecia uma resposta à altura.

Finalmente, depois de comer um brigadeiro e limpar os dedos na minha camisa, João Henrique respondeu:

- Mamamama! - E acelerou o meu nariz.


Confesso que não era bem a resposta que eu esperava. Por isso a dúvida ficou pairando por ali, entre salgados, brigadeiros e troféus.

Ao perceber a ausência de respostas, a dúvida, essa Honda desgovernada, contornou os cuidados e atenções de Mamãe Carol, dobrou a curva da Vó Nelda, saculejou sobre minhas costelas magras e se postou no topo do pódio.

Então eu ouvi Baragahansa. 

Não, não foi o ronco dos motores. Rasta Baragahansa foi um iogue, guru e capoeirista jamaicano que desapareceu em 1836 depois de um encontro misterioso com um pajé de Washington. 

Mas, para os que sabem perguntar, o mestre sempre costuma se manifestar nesses casos de perguntas irrespondíveis e Polar em excesso.

Dessa vez ele se materializou na cadeira vazia bem ao lado da Bisa.

- Tu também é piloto? - perguntou ela, confundindo dreadlocks com capacete.

Interrompi os mais velhos porque havia pergunta mais urgente para fazer:

- Guru, sábio guru, me responda só uma coisinha.


- Ih, conheço você. Começa com uma coisinha...

- Apenas me diga, assim, sem mais delongas. Esse guri aqui, com esses olhinhos de matar a gente, ele tem fé?

Baragahansa lambeu os dedos para limpar o molho do cachorro-quente, observou João Henrique por alguns segundos, fez blrrrrrr, fez careta, imitou um jumento. Voltou a observar.

João, o observado, acelerava as tranças do guru.

- Eu diria que sim – afirmou Baragahansa depois de algum tempo -.Talvez - disse em seguida -. Talvez não - disse depois.

- Oi?

- Na verdade, fé não é importante.

- não é importante?!


Até o João parou de sorrir.

- JH tem algo muito mais importante do que fé.

- Teta?


João voltou a sorrir.

- Também. Mas algo maior.

- O dindo Alemão?

- Não. Cheio de firmeza e branduras.


- A fortaleza de doces da dinda Merli?

- Também não. Que vem de muito longe, mas está bem perto.

- A tia Didi?

- Não. O que aparece onde menos se espera.

- Papai Rodrigo que travou no gate, mas já aponta em primeiro, tapado de quero-quero?

- Não, cara! Você é mesmo ruim nesse negócio de adivinhação.

- Também... Cada dica...

- Quer que eu fale?

- Já? Não quer reconhecer a pista primeiro, conferir a suspensão, checar os pneus, dar um autógrafo?

- A permanente sensação de Deus.

- O quê?

- João tem a permanente sensação de Deus.


- Baragá, meu guru, pega leve. É festa de criança.

- João tem a certeza que não vem da lógica nem dos comissários de provas.

- Caramba! De onde vem essa certeza toda em tão pouco tempo? Tá mal começando a caminhar.

- João está em contato puro com o divino, sem questionamentos, sem dúvidas, sem necessidade de evangelhos ou chefes de federações.

- Ô guri de sorte!

- João Henrique e todos os outros desengonçadinhos dessa idade mantêm um contato íntimo com o Todo, aquela permanente sensação de Deus.

- Então não é preciso ter fé?

- Fé em quê? Basta sentir a presença. Basta saber que lugar melhor não existe do que a mão gorda de Deus.


- Não esquece da teta...

- Não esqueço. É assim mesmo essa presença. A companhia, a segurança e o alimento perfeito. Assim é Deus presente. Como uma teta.


- Mas que Deus? Existem mais deuses no mundo do que pilotos nesta festa.

- Deus é Indescritível. Apenas faz sentido quando sentido.

- Faz sentido.

- Ô!

- Acho que já senti uma vez ou outra. 

- É provável - concordou Baragahansa depois de mastigar uma coxinha - Geralmente você sente esse barato quando algo impossível acontece a você. Aquele instante em que, de alguma forma, você já sabia que o impossível ia acontecer.

- Como uma ultrapassagem na última curva - interferiu Papai Rodrigo.

- Já sem pneu e braço. Sim. Ali você recebe o sopro sublime que precisava.

- Bem que eu senti um negócio...

- O segredo está em manter aquela sensação de contato, da certeza da presença. Manter essa sensação e trazê-la para todos os momentos. Porque sabemos que é possível.

- Daria pra ganhar todas as provas do campeonato.

- Ou serenar as derrotas.

Enquanto papai Rodrigo se afastava (não muito satisfeito com aquele papo de derrota), eu tentei ponderar com o guru:  

- Pra você e pro João parece fácil, lúcido Baragahansa. Mas isso não é tão simples pra nós, pra toda essa gente grande e cabeçuda que não consegue ver além do que foi ensinado.

- Desensinado.

- É que essa correria toda dificulta um pouco, você sabe. 

- Não sei.

- Sempre tem uma suspensão pra ajustar, uma fralda pra trocar, um texto pra traduzir... A gente acaba nem notando essa presença entre mamadeiras, chaves de fenda e planilhas de texto.

- A culpa é somente sua, você sabe.

- Minha?!


- Sua.

- Com tanta gente nesta festa? O culpado não pode ser o Tivô, por exemplo? Ou a Tivó e aquele rejuvenescimento suspeito... Que tal a Vó Norma? Tá com cara de culpada.

- A culpa é sua e de todos vocês.

- Ah, agora sim... Então vamos dividir essa cruz.

- Estejam à vontade - disse Baragahansa - Eu vou comer uma fatia de bolo. Tem guaraná?

Com autorização do guru, conclamei a galera:

- Chega aí, Vô Edu! Tio Diego e tia Vivi, não se façam de salame! Temos uma cruz pra levar pro furgão.

- Por falar em furgão... - recomeçou o guru entre duas garfadas.


- Aí vem...

- O furgão também tem sua culpa.

- Tranquilo. Ele vai fazer a maior parte do trabalho.

- O furgão é um símbolo de sua civilização.

- Eu nem sou tão civilizado assim... Hoje, por exemplo, eu palitei os dentes na festa.

- Se você vivesse lá na origem do seu palito e de sua cruz, em comunhão com a fonte, em contato pleno com tudo aquilo que vive, você seria igualzinho ao João Henrique.

- Bochechudo?

- Talvez. Mas saberia de a
lgo que só ele sabe e que você desaprendeu nas carteiras da escola, nas escrituras, nos papais-do-céu ensinados e não sentidos.

João mostrou as palmas das mãozinhas para dizer: Cadê? 

- A tal sensação de Deus? - perguntei.

- Essa.

- Mas, mestre Baragahansa, como aprender o desaprendido?

- Tem bons professores por aí, pequeno gafanhoto.

- Ufa! Quem são esses caras?

- Vou dar umas dicas.

- Sério? Até desanima...

- Procure entre aqueles que praticam o contentamento.

- Vai ser difícil. Tem bastante gente contente na festa. Olha a cara da tia Mara e da tia Patrícia!

- É verdade... E a tia Regina? Cheia de sorrisos.

- Flávia, que se obriga a rir das piadas do Felipe.

- Ah, são boas, vai...

- Do Olavinho nem é preciso falar.

- Com tanto algodão-doce...

- Tio Nereu sacudindo os bigodes.

- Leto e Iva gargalhando.

Baragahansa, com a cara lambuzada de merengue, apanhou um beijo que João Henrique jogava e mudou o rumo da prosa: 

- Quer outra dica?

- Manda.

- Você também pode procurar entre aqueles que são gratos ao Grande Prêmio da Vida...

- Conheço alguns - dei uma piscadinha pra Dona Nelda.

- Entre os que fazem da derrota um ensinamento, que são humildes na vitória...

- Também conheço.

- Entre os que não reclamam dos buracos na pista...

- Ah, João Pedro, João Pedro...

- Procure entre aqueles que sabem que o chassi é importante, mas quem manda é o terreno.

- Opa! Agora afunilou a pista.

- Procure entre os que sabem que não é o homem que dirige na Grande Reta do Destino.

- Guru... Hoje sim você tá dando alimento pra cachola!

- Você também pode procurar entre os que percebem a essência das outras criaturas.

- Piloto é criatura?

- Esquisita, mas é. Procure também entre os que perdoam, que toleram. 

- Pontapé na fechada é tolerância? Dá pra perdoar?

- Well...

- No fim, grande Baragahansa, você há de concordar que tem gente pacas.

- São quase sempre os mesmos.

- Já facilita.

- Agora o mais importante.

- O mais importante. Essa eu não posso perder.

- Procure entre os que sorriem e exercem gentilezas.

- Sorriem e são gentis?

- Sempre. Gentis e sorridentes.


Eu sorri cheio de gentilezas para o guru Rasta Baragahansa e ele se despediu em uma nuvem de fumaça.

Com o mais importante aprendido (ou desaprendido), recitei um mantra, bebi mais um gole da Polar e percebi que João Henrique ainda dava tchauzinhos e mandava beijos para o mestre jamaicano.

Foi quando me ocorreu um segundo pensamento a respeito da mesma criança.

JH franziu a testa. O que esse tio-vô doido ia perguntar agora?

Mas pra essa nova pergunta não é preciso consultar guri ou guru.


Basta que fale você aí, que sempre fala a verdade:

Será que existe, no mundo inteiro, alguém mais sorridente e gentil do que esse desengonçadinho de Deus? 


*(Notinha final: Para desespero do pai, JH vai ser poeta.)