sábado, 2 de abril de 2016

Mário? Que Mário?

La Farce du Cuvier - Anônimo

Sabichão


Organização Social e Política Brasileira (OSPB) foi uma matéria escolar criada durante a ditadura para disseminar o conceito de um Brasil imaginário.

No Brasil daqueles livros e apostilas, não havia miséria, fome ou corrupção. Na palavra daqueles professores, o Brasil era um paraíso de igualdade racial e econômica.


Saneamento básico, segurança, emprego pleno, salários justos, gente sorridente - essa a realidade país afora.

De acordo com professores, livros e apostilas, o Brasil vivia em plena democracia, sim senhor. E o general sempre cuidava do cidadão.

Como convencer os colegas de aula sobre a existência daquela metralhadora de mentiras? Como ajudá-los a perceber que a escola apenas reproduzia as vozes do poder?


De vez em quando eu até tentava uma cutucada:
- Estamos sendo adestrados.

- Tu quer saber mais que o livro? Mais que a professora?
- A professora sabe bem mais do que eu, só que ela não diz.
- Por que ela não diz?
- Por medo ou cumplicidade. Aposto na segunda. E você?
- Eu aposto que tu tá louco.


A Revolução dos Hibiscos
 
Quando eu tinha uns 16 anos e estudava na Escola Técnica Federal de Pelotas (depois CEFET, hoje IFSUL), uma panelinha se reunia no jardim da escola para discutir a ditadura que estrebuchava. Também era um bom lugar para ler ou escrever poesia e para aprender um pouco além do que nos permitiam.

A professora de OSPB deve ter sido avisada daquela ameaça que germinava no jardim. Em outra sala, ela resolveu enriquecer uma explanação sobre os terríveis comunistas que aguardavam em suas tocas:

- Numa turma aí – disse ela, para dar um exemplo próximo -, numa turma aí, tem um grupinho típico da esquerda festiva.

Confesso nunca ter entendido a expressão. Afinal ninguém fazia festa alguma. Qual seria o equivalente do outro lado? A direita fúnebre?

O fato é que sem festa, funeral ou papas nas línguas, o Mário (hoje escritor e jornalista), provocou um pequeno desconforto em nossa rija professora de OSPB.

Vou contar o episódio.




Uma Simples Aluna

Antes da apresentação de um trabalho em grupo a respeito das maravilhas da economia brasileira (a inflação chegou a 230% naquele ano), a professora pediu que cada grupo elegesse um porta-voz.


- A partir de agora – encorajou ela – cada porta-voz é um professor. Eu vou me sentar lá no fundo e não vou interferir na apresentação de vocês. 

A baixinha empertigada de salto alto – toc toc toc toc - percorreu o corredor entre os estudantes e se acomodou na última cadeira da fila central. Depois sorriu para demonstrar que estava entre iguais.

- Eu sou apenas uma aluna – disse ela – Eu não vou interferir.

A coisa ia conforme o combinado. Porta-vozes se sucediam para repetir um amontoado de fantasias e devolviam um sorriso para a aluna do fundão.


A aluna balançava a cabeça e simulava um aplauso - aprovava, orgulhosa, o eco de blefes e auto-enganações.

Até que chegou a vez do Mário, nosso porta-voz.

Mário ergueu-se com a elegância que a situação pedia, caminhou para seu provisório posto de professor e sentou-se na mesa. As pernas magras e livres balançavam enquanto ele examinava as faces entediadas do público.

- Antes de mais nada – ele ergueu a apostila – é preciso esquecer esta papagaiada. Aqui só se pode encontrar mentira pura e deslavada.

Todas os olhos se voltaram para o fundo da sala. Lá um rosto se descorava.

- Menino...

- Tudo mentira – continuou o Mário – Tudo para esconder de vocês o que os milicos estão fazendo com o país.

- Menino, você está se excedendo.

- Os professores que normalmente ocupam este lugar, eles são cúmplices dessa ditadura. Ou tão tudo com o cu na mão.

Mencionar o cu de um professor equivalia a pichar o muro do quartel. Nossa professorinha saltou da cadeira.

- Mas é muita ousadia. O que você está...

- Quero lembrar – Mário ergueu a mão para detê-la – que o professor aqui sou eu. A senhora é apenas uma aluna. Não interfira, por favor.

Aluna ou professora, o fato é que a baixinha atravessou a sala como um bólido de salto alto. Por um segundo todos tiveram certeza de que ela se arremessaria sobre nosso porta-voz.


Não o fez. Abriu a porta com violência, manteve a mão na maçaneta e a porta aberta.

A indicação era óbvia. Ela convidava o Mário a se retirar, a se encaminhar para a secretaria, a se exilar em Moscou.

Mas não foi o que aconteceu. Quando Mário desceu da mesa e se dirigiu à saída, a professora o deteve.

- Volte para seu lugar.

Assim dizendo, nem esperou a ação do Mário. Foi ela quem saiu e fechou a porta.

Depois da saída inesperada da professora, ficamos conjeturando sobre o que poderia acontecer com o Mário. Será que ela voltaria com o diretor, com uma escopeta, com o general Figueiredo?


Não. Naquele dia a professora de OSPB não mais voltou.
 
O dia se passou, os dias se passaram e nada aconteceu. Ficamos sem saber se a professora se calou, se o diretor se calou, se calados todos decidiram permanecer por razões que só a eles interessavam.

(Em outra oportunidade, eles não conseguiram se segurar. Depois de conclamarmos uma reunião pró eleições diretas para o grêmio estudantil, a direção distribuiu uma carta aberta aos estudantes. A carta alertava sobre as ações de um grupo de subversivos que pretendia desestabilizar a ordem escolar.)


Sala de Aula Brasil

E hoje? Como convencer os alunos desta grande sala de aula chamada Brasil? Como colocar uma pulguinha atrás de cada orelha? Não basta dizer “ei, acorda, você está sendo enganado, os interesses da imprensa não são os seus”.

Como dissuadir alguém de suas certezas se essas certezas são alimentadas a todo momento e em todo lugar? A concorrência é dura, aquela gente fala mais alto.



Entre a Cruz e a Caldeirinha

Mas a questão não é apenas técnica ou de volume de voz. Uma opinião também é motivo de orgulho e vaidade – principalmente quando tornada pública.

Opiniões públicas são como algemas para quem as emitiu. Voltar (publicamente) atrás, confessar um erro de interpretação do mundo, admitir a ruína de seus recentes ídolos de barro, tudo isso exige um raro desprendimento de certezas e vaidades.

No fim, impotentes diante da inconsciência coletiva, acabamos por fazer o jogo do inimigo. Travamos um embate não contra o enganador, mas contra o enganado.

Esse embate tende a radicalizar certezas e estratificar posições. Promove o uso de rótulos e coloca lenha na fogueira dos chavões e frases aprendidas. Sim, você será chamado de cego, surdo e barrigudo.

- Você quer saber mais do que a Veja, a Folha, o Estadão, a Globo?
- Todos eles sabem bem mais do que eu. Só não querem dizer.
- Por que não?

- Porque teriam que falar da operação Zelotes, do Trensalão, do Banestado, do roubo da merenda, da lista da Odebrecht... Coisas meio complicadas de explicar, entende? Tem muito defensor da moral envolvido ali.
- Ah! Eu conheço esse seu discurso... Conversinha típica de barrigudo.


Por estar cansado de adjetivos (barrigudo eu não sou), tenho me esquivado de provocações.

Talvez não seja a atitude mais recomendável, mas, juro, se alguém me fizer a mais provocativa de todas as perguntas: - Mário? Que Mário? -, vou pensar três vezes antes de responder:

- Aquele que... (1, 2, 3) ...Aquele que escreve na Folha. Mas não segue a apostila.





Outros desengonços do mesmo naipe:





domingo, 27 de março de 2016

A Nacionalidade das Coisas




Encontraram-se com pontualidade britânica em frente ao restaurante francês. Ele de sapatos italianos, ela de sandálias havaianas. Ambos usavam perfume francês.
- Você veio de quê?
- De cavalo paraguaio.
- Eu de trem japonês.
Armados de canivete suíço, soco inglês e chave inglesa, abriram caminho entre os membros da máfia italiana. Essa era a única maneira de percorrer o corredor polonês que dava acesso ao restaurante francês.

- A carta de vinhos, senhor. Temos vinho chileno, argentino e italiano. Sim, também temos vinho francês.
- Eu vou querer um uísque escocês.
- Para a senhora?
- Champanhe. Francês, é claro.
- Para comer?
- Salada russa e filé.
- À francesa?
- À cubana. E não esqueça a pimenta mexicana.
- Pode ser molho inglês?
- Manda.
- Enquanto isso eu vou trazer um pãozinho sírio, um pãozinho italiano...
- Por favor, só pão francês.

- Sobremesa, senhores?
- Chocolate suíço pra mim.
- Pra mim creme holandês. E pode trazer o café.
- Árabe ou brasileiro?
- Tem italiano?
- Temos chá indiano.

Foram de café colombiano, queijo suíço e charuto cubano. Depois, como um lorde inglês, ele se ergueu e a convidou para dançar um tango argentino.
- Você dança muito bem, meu bailarino espanhol.
- Minha bailarina russa... O que é isso aqui no seu ombro?
- Um dragão chinês.
- Eu tenho um tigre asiático. Ou bengalês. É meu signo no horóscopo japonês.
Foi o que bastou para o primeiro beijo francês. Mas, como sempre acontece nessas novelas mexicanas, logo começou um pagode russo e eles resolveram sair à francesa.

Um sombreiro mexicano pendia na parede da sala sobre a foto de um xeque árabe entre pirâmides egípcias.
Sentado no sofá de couro italiano, ele a esperava amarrar o pastor alemão com salame - italiano como o sofá, a máfia e seus sapatos.
Ela acendeu um incenso indiano, tomou um banho checo, caminhou até a cozinha americana e trouxe uma cerveja alemã.
Nem beberam. Depois de uma sessão de massagem tailandesa, amaram-se sobre o tapete persa. Dizem que rolou até beijo grego.

Outros desengonços: