terça-feira, 12 de agosto de 2014

O carro em que você quer se ver






“Eu tive a experiência de sair do meu corpo. Primeiro eu flutuei com o vento. Depois, eu me vi pelos olhos dos outros. Fui um pássaro, fui idoso, fui criança, fui minúsculo. Eu me senti livre, excitante, renovado. E aí...” (Transcrição do áudio do comercial do novo Honda Civic)



Na tela de sua TV, enquanto o autor das palavras acima dirige sua reluzente máquina por paragens longínquas, erguem-se os olhos admirados de um velho, os olhos curiosos de uma criança e os olhos surpresos de um pássaro. Apenas um inseto - representando o supracitado minúsculo - não demonstra muito interesse. Você sabe, insetos são tão difíceis de adestrar...

No comercial, o proprietário do Honda, ao sair do corpo, vê a si mesmo (ou o carro) por olhos alheios, pelos olhos do velho, da criança e do pássaro.

Depois, certificado de que parecia cool, precedido pelo olhar insinuante de uma bela mulher, o iluminado proprietário do Honda Civic, encerra sua jornada extra-corpórea: “E aí... Eu voltei para o meu corpo. Eu gostei de ser eu.”

E parte com seu bólido pelos asfaltos deste mundo. Na tela, o veredicto: "Honda Civic - O carro em que você quer se ver."

Procurei encontrar um rótulo para descrever a primeira impressão causada pelo comercial. Depois de algumas pestanas queimadas (que ninguém mais as queima hoje em dia), entendi que Apelo Explícito à Nossa Vaidade Exacerbada seria rótulo adequado.

A novidade aqui não está na vaidade exacerbada, mas no apelo explícito. Os publicitários cansaram-se das sutilezas.

Eles já não têm pudores em nos enfiar goela abaixo as nossas necessidades vazias: “Eu sei que você não está interessado na utilidade deste treco, eu sei que você está cheio destes trecos no porão, mas este treco é mais novo do que o treco do seu vizinho. E já vem com comando de voz”.

O comercial do Honda Civic não valoriza o produto por suas qualidades como meio de transporte, por seu conforto, por sua velocidade, por seus acessórios.

O que o comercial está vendendo é a garantia de aprovação do outro, o olhar admirado da criança e do velho, o olhar surpreso do pássaro. O olhar fascinado do mundo sobre o seu mais novo treco.

O proprietário do Honda diz que se sente livre, renovado e excitante. Pela experiência única que vive, deveria se sentir excitado, mas ele se sente excitante, ele sente que provoca excitação nos outros.

O que a experiência causa nele não tem importância. Ocupado em deslumbrar-se consigo mesmo, somente depois de ter a certeza do consentimento alheio é que o homem volta ao corpo.  Ou volta ao carro, porque o carro é que despertou fascínio, não o homem.

Observe: com tanto mundo para se ver, esse sujeito ultrapassou as fronteiras do corpo e foi ver a si mesmo!

Ele gostou do que viu, gostou de ser ele. Mas... Ele quem?

A mensagem é clara: você apenas existirá (isso é, será socialmente carimbado como humano) se consumir.  Apenas o consumo atrai o respeito do velho, da criança, do pássaro e das mulheres. Restará a dúvida a respeito daquele inseto.

Que saudade dos tempos em que se vendiam sonhos.

domingo, 10 de agosto de 2014

Poemofobia


mayonaka-kyoku
- Pra que serve a poesia?
pergunta toda essa gente -
- Se a coisa não tem serventia,
a vida não vai pra frente

- Pois que vá a vida pra trás,
lá no fim a gente acerta
Porque vida sem poesia
é como cama sem coberta

- Melhor cama sem coberta
do que coberta sem cama
Ou será que o poeta
prefere dormir na grama?

- Que seja o céu meu telhado
e a grama o meu leito
Você, deitada ao lado,
repousará no meu peito

- A me deitar com poetas
prefiro dormir em pé
Muito pior se o poeta
for chamado José

- Posso não ser um Carlos,
Joaquim, Ferreira, João
Mas saiba que sou aquele
pobre José, de Drummond

A Bunda do Avestruz





 Retira, Deus, dessa gente
o destino de avestruz
A cabeça enterrada
e tantos traseiros nus

Além daquelas calçadas
deste quarto de hotel
entendo a mulher que pára,
sei por que olha pro céu

É porque assim parada,
ela vai enfim perceber
que se engole a madrugada,
que é doído amanhecer

O jeito é seguir em frente,
triste sina de avestruz
Ela, que nem tem dentes,
morde o cartão do SUS

Os filhos sonham com fadas,
o marido, com a amante
Ela não sonha nada,
por ter sonhado o bastante

Se vidros estilhaçam
e homens dizem amém
Debaixo de nossas ruínas
vai sobrar é ninguém

Que tal, caro avestruz,
meter o pé nessa gente?
 Mandá-los tomar nos cus,
nem votar pra presidente