sábado, 24 de dezembro de 2016

Consultem Nossas Crianças!



Esse é da Lata

Lá nos distantes anos 70, quando eu estudava na segunda série do ensino fundamental, a direção resolveu implantar um arranjo inovador na sala de aula. 

Seguindo o revolucionário layout, os professores separaram os alunos em quatro filas de competência: Fila do Ouro, Fila da Prata, Fila do Bronze e Fila da Lata.

Por competência entendia-se a soma de alguns fatores: desempenho nas provas, comportamento na sala de aula, assiduidade, asseio corporal e com o material didático, entre outros quesitos mais ou menos discutíveis.

O curioso é que os alunos da Fila do Ouro – entre eles, eu – não se mostravam especialmente orgulhosos pela distinção. Ao contrário, parece-me que partilhávamos alguns incômodos.

Haviam nos colocado em um mundo à parte, a salvo das agruras dos boletins. De nossa ilha de excelências, olhávamos para os amigos desafortunados e pouco faltava para que esticássemos nossos braços em oferta de socorro.



O Importante é Competir

Depois da natural compaixão pela Fila da Lata, a flor da inveja desabrochou em nosso jardim dourado. E fomos nós que plantamos a semente.

Não demorou para começarmos a sonhar com o lugar reservado àqueles rebeldes de notas baixas e unhas sujas. Porque, agraciados com a inclusão na Fila do Ouro, deveríamos demonstrar permanente merecimento para continuar ali. Ninguém queria ouvir algo como: “Logo você, Heitor, da Fila do Ouro! Tsc, tsc...”

Os da Fila da Lata nada precisavam provar e ainda recebiam incentivos: “É por essas e outras, Berenice, que você nunca vai sair dessa fila.”

Você acha que a Berê queria sair?

A ideia por trás da discriminatória classificação baseava-se no incentivo à concorrência. Entendia-se (como infelizmente ainda se entende) que competição promoveria o interesse pelo conhecimento.



Farinha pouca, meu pirão primeiro

Por milhões de anos, cooperação – e não competição – se estabeleceu como base para a organização dos grupos sociais humanos.

O homem civilizado, com a divisão do trabalho, com a imposição de hierarquias e a supervalorização do poder, ignorou a experiência daqueles milhões de anos e inseriu a competição como alavanca para o sucesso.

Para o sucesso. Sucesso!
Diga não aos losers!
O indivíduo acima do grupo!
O outro como espelho, inimigo ou trampolim.
Querer é poder, faça por merecer!
Se visitar o inferno, não deixe de abraçar o capeta.



Vale o que está escrito

Alheios a comparações, antes mesmo de chegar a prezinhos, jardins e afins, nossas crianças já controlam os mecanismos complexos da língua falada. Como então explicar que elas se tornem adultas sem conhecerem as noções básicas da expressão escrita? Porque, para desespero de educadores, é exatamente isso o que acontece com embaraçosa freqüência.

Mas o que mudou no transcorrer desse processo de aprendizagem oral e escrita?

Mudou o método, mamãe. Mudou tudo, papai.

Aprender a falar foi tão fácil e a necessidade tão óbvia. Havia um mundo de palhaços caseiros, que faziam caretas, cantavam musiquinhas e repetiam dia após dia os mesmo sons, sem reprimendas, com incentivo genuíno e constante.

Entre canções, risos e tatibitates, confundiam-se e entrelaçavam-se a inseparável dupla prazer e aprendizado.

Ah, aquilo foi uma diversão!

Por que cargas d’águas então, de uma hora para outra, decidimos alterar o método utilizado para estimular nossas crianças?

Por que será que, sem aviso, sem motivo, abandonamos o posto de escudeiros desses guerreiros novatos que marcham, com seus tênis luminosos, pelas trilhas do conhecimento?

E por que os colocamos lá, no lugar estranho, entre quatro paredes desconhecidas e indiferentes?

Antes, o mundo (está bem, o quintal, o playground, a vizinhança). Agora, a visão limitada à lousa, ao caderno, à nuca do colega da frente.

Através da  janela, paisagens e promessas representam impossibilidades, lugar de não olhar, lugar de não estar, lugar de não aprender.

Presta atenção, Berê!
Chega de tantos por quês.
Pra que serve? Não importa.
O motivo? Irrelevante.
A matéria? Tanto faz.
Mas vai cair na prova de quinta.

De forma definitiva e inapelável divorciaram-se prazer e aprendizado. Ninguém sabe por que aprende aquilo que o obrigam a aprender.

Temos apenas uma possibilidade de salvação.

Esqueça teorias, processos e experiências relacionadas à educação formal.

Fale com os pequenos especialistas. Consulte as crianças.


Consultem as Crianças

Consultar as crianças? Essa é boa. O que seria consultar as crianças?

Convocá-las para reuniões no MEC, assistir suas palestras, solicitar planilhas comparativas?

Talvez não seja uma boa ideia.

Consultar as crianças não requer ouvidos ou atas de reunião. Requer espírito, mente aberta, requer a recuperação de nossos próprios estados infantis, requer encontrar o pensamento não viciado de nossa infância.

Somente consultando nossas crianças poderemos afinar nossos ouvidos emocionais e assimilar seus desejos, entender anseios, despertar interesses.

Somente consultando nossas crianças, saberemos participar de forma natural e efetiva do aprendizado de nossos meninos, de nossas meninas.

Somente consultando nossas crianças, abriremos torneiras de sensibilidade para os homens e mulheres de amanhã.

Porque o conhecimento é líquido. E essas crianças têm sede.




Mais desengonços sobre educação:
SEMENTES - Prazer em Conhecer


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Eita dia esquisito!

Imagem de Fábio Oliveira - melhor conhecido como Cranio

Eita dia esquisito!
A varanda atulhada de pardal
e no varal tem pendurado,
entre tardes e calcinhas,
um recorte de jornal

No jornal
tá lá escrito
(eu vejo e não acredito)
índio quer apito
é pra pular carnaval

Índio quer TV,
celu,
abadá
Índio quer guaraná
(melhor que aquela semente
cultivada pela gente
vinda lá do Pará)

Índio quer jogar este game
mas por mais que a gente teime
ninguém aprende a jogar

Aqui é bola quadrada,
aqui é jogo doente
A pelada é na calçada
no meio de tanta gente
Só depois dessa cachaça
dá pra seguir em frente

Lá no bar tá o sujeito
com seu martelo de pinga
Não tem grana
arruma briga
mexe com rapariga
Lá no bar tá o sujeito
que não tem amor à vida

Tem Cristo,
tem crucifixo
Não tem Jaci ou Tupã
Bem vindo pajé
Bem vindo encarnado xamã
Para índio sem apito,
o futuro não existe,
denunciado desamanhã

Eita dia esquisito!
No varal tá pendurado,
entregue ao vento
e à própria sorte,
um índio civilizado
no desventurado recorte

É um índio sem apito,
lá de cima,
cabra forte,
e seu segundo suicídio
pra fugir da mesma morte