sábado, 16 de julho de 2016

Descabelado Haicai


Posta-restante de Ossos

Solidão e silêncio. Transatlântico. Tripulação de angústias. Cura de obsessões.
Cemitério: posta-restante de ossos – alguém para reclamá-los?



A lua cheia compete com cintilações travertinas na superfície raiada do mármore.


Nas lápides, retratos em preto e branco assumem grandiloquência. 

Em pé sobre a mais tola das lajes, reconhecemos um italiano que atuou em La Dolce Vita escoltado por alguns eunucos de Sherazade.

As aleias se estendem sob as grandes asas de um anjo e adormecem no instante em que o perfume das flores adensa-se em uma coroa de lótus.

Duas crianças acompanhadas de perto pela mãe correm por entre os sepulcros. A menina, seguida pelo irmão, ajoelha-se sobre a laje, não por reverência, mas para ler o epitáfio. 
- Eu sou dos que não apo... apo...
- ...drecem - auxilia o irmão.
- Fui, por na... por na...
- ...tureza.
- Mais ho... homem...

Abreviemos a leitura: “Eu sou dos que não apodrecem. Fui, por natureza, mais homem do que fui carne. A carne que falta me faz, se homem continuarei a ser?” 

O irmão afasta-se para ler outro epitáfio, a menina assume posição propícia, ergue o sujo vestido e, solene, faz xixi.

A mãe ajeita o vestido e o cabelo da menina, examina o nariz do menino, sorri para eles.

- Vamos pra casa, mamãe? – pergunta o menino.

- Sim, hora de dormir, querido.

Os três se aprumam e partem, passos largos, ritmados, com a obstinação de um pequeno exército.

Lá se vão os coturnos esfarrapados e gentis. Pisoteiam flores, cruzes e prantos ancestrais.

Nos primeiros passos, o ruído dos sapatos ecoa, perverte o silêncio. O coração é carrilhão antigo e resolve bater no ritmo que lhe convém.

Mas em seguida, no psiu dos mortos, corações se calam e se aquietam os passos.

O silêncio volta à necrópole.

Sem som de passos para que a noite possa ser irreal e eterna.

Sem som de passos em respeito à realidade trajada de sonhos.

Sem som de passos sobre o descansar dos mortos.

Não deveríamos dar ouvidos, mas, sob uma lua assim, quando se nos acometem pensamentos na carne e nos ameaçam as articulações, sempre haverá um de nós a dizer:

“Hei de morrer em leito de brancos lençóis. Terei olheiras dignas e voz mansa, resignar-me-ei às palavras de um padre, sorrirei alentos para mulher e filhos. Se eu morrer assim, paciente e amável, quero ser sepultado em noite como esta, de brancura e luar. Chamem amigos de óculos escuros para dizer coisas boas de mim.

Mas se, ao contrário, minha morte se apresentar ávida e veloz, recolhida às pressas do baú de um velho sovina, castrando pecados que tenho por cometer, se for assim a minha morte, enterrem-me durante a tempestade, na noite sem lua e sem cor. Enterrem-me protegido pelo guarda-chuva de meus pais – porque eles virão. Enterrem-me anônimo como sempre fui”.

E lá se vão as três criaturas noturnas. Bloco de querubins, ala de passistas invisíveis, ala atenta aos gestos mudos na plateia, ala testemunha do fogo fátuo que dança sobre as catacumbas.

E lá se vão as três criaturas noturnas no ritmo das coisas desconhecidas, espreitadas pelo olho do não visível.

Ocultos à pequena procissão, Arlequins celebram os foliões solitários, exaltam aqueles que decidiram desfilar a própria alegoria.

Vivas! Aplausos! Odes àqueles que rejeitam o óleo dos enfermos e comparecem a encontros não marcados com a morte! Loas aos que buscam a urna de seus últimos restos bem antes da quarta-feira de cinzas!

O frágil exército dobra a esquina e segue o caminho de casa. A menina recolhe uma violeta e a ajeita nos cabelos. O menino cumprimenta uma fotografia e sorri para a lua cheia.

Resta somente o curto percurso das velas, por entre despojos, preces e queixas. Resta a última trilha de folhas secas.

Então, a um sinal acostumado da mãe, cessam passos e silêncio.

- Chegamos – ela anuncia.

Os meninos correm. A volta para casa. O reconhecimento. A serena segurança dos lares.

Sobre o pavimento, esticam um cobertor roto e ajoelham-se para um agradecimento.

Na prece compartilhada, pedem a todos os defuntos que não perturbem o sono dos vivos.

Observados pela lua cheia, trocam beijos e boa-noite.

Depois, gratos e brandos, se deitam sob as asas do anjo Gabriel. Ali, acolhidos pelas estrelas atentas de Deus e aquecidos pelo hálito dos mortos, sonham com o dia em que não mais haverá dores ou frio, nem a densidade dos corpos.