segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Cadê Minha Recompensa?

Image by Jie Ma


E todos aqueles dias
que eu ralei feito louco
na vida que eu não queria
vendendo meu tempo pouco?
Eu não comia, eu não bebia
vendia água e farinha
e do dinheiro que eu tinha
não restava nem o troco

Na praça busquei o padre,
em missa procurei puta
O saldo o Senhor já sabe,
Deus entende essa pergunta,
não há boquinha que fale,
é tanta resposta fajuta

Percorri aquelas noites,
sem sono ou ventilador,
perdido da minha gente,
distante do meu amor,
ao encontro deste instante
diante de Nosso Senhor

Apelo pra Virgem Maria,
que sempre esteve a meu lado,
será que eu não merecia
algum apreço e cuidado,
anistiar minhas manias,
perdoar poucos pecados?

Eu doei para indigente
e endividei com endinheirado
E a devida recompensa
era só papo furado?
Não fui pobre nem fui rico,
mas pra Deus vendi fiado
Agora como é que eu fico
se no céu eu fui barrado?

domingo, 25 de dezembro de 2016

Um Sussurro de Trombetas

Image by David Ridley

Toda coisa pequena
que o olho não vê
que o corpo não sente
que na mente não há
repousa
me aquece
e me acolhe
nesta leitora de códigos
de barras do imperecível

Toda coisa grande demais
pra ser carregada
no bolso
no corpo
em sacolas da C & A
emerge da incerteza
e sobre o lombo dos burros
trombetas sussurram
pra me despertar

Álgebra da placidez - dois opostos se alinham na horizontal do ar
Ábaco – instrumento de cordas em dedos divinos
Sossegos - onde se desfaz segredo e ego não há
Bastam essas três definições e já temos todo o universo pra calcular



sábado, 24 de dezembro de 2016

Consultem Nossas Crianças!



Esse é da Lata

Lá nos distantes anos 70, quando eu estudava na segunda série do ensino fundamental, a direção resolveu implantar um arranjo inovador na sala de aula. 

Seguindo o revolucionário layout, os professores separaram os alunos em quatro filas de competência: Fila do Ouro, Fila da Prata, Fila do Bronze e Fila da Lata.

Por competência entendia-se a soma de alguns fatores: desempenho nas provas, comportamento na sala de aula, assiduidade, asseio corporal e com o material didático, entre outros quesitos mais ou menos discutíveis.

O curioso é que os alunos da Fila do Ouro – entre eles, eu – não se mostravam especialmente orgulhosos pela distinção. Ao contrário, parece-me que partilhávamos alguns incômodos.

Haviam nos colocado em um mundo à parte, a salvo das agruras dos boletins. De nossa ilha de excelências, olhávamos para os amigos desafortunados e pouco faltava para que esticássemos nossos braços em oferta de socorro.



O Importante é Competir

Depois da natural compaixão pela Fila da Lata, a flor da inveja desabrochou em nosso jardim dourado. E fomos nós que plantamos a semente.

Não demorou para começarmos a sonhar com o lugar reservado àqueles rebeldes de notas baixas e unhas sujas. Porque, agraciados com a inclusão na Fila do Ouro, deveríamos demonstrar permanente merecimento para continuar ali. Ninguém queria ouvir algo como: “Logo você, Heitor, da Fila do Ouro! Tsc, tsc...”

Os da Fila da Lata nada precisavam provar e ainda recebiam incentivos: “É por essas e outras, Berenice, que você nunca vai sair dessa fila.”

Você acha que a Berê queria sair?

A ideia por trás da discriminatória classificação baseava-se no incentivo à concorrência. Entendia-se (como infelizmente ainda se entende) que competição promoveria o interesse pelo conhecimento.



Farinha pouca, meu pirão primeiro

Por milhões de anos, cooperação – e não competição – se estabeleceu como base para a organização dos grupos sociais humanos.

O homem civilizado, com a divisão do trabalho, com a imposição de hierarquias e a supervalorização do poder, ignorou a experiência daqueles milhões de anos e inseriu a competição como alavanca para o sucesso.

Para o sucesso. Sucesso!
Diga não aos losers!
O indivíduo acima do grupo!
O outro como espelho, inimigo ou trampolim.
Querer é poder, faça por merecer!
Se visitar o inferno, não deixe de abraçar o capeta.



Vale o que está escrito

Alheios a comparações, antes mesmo de chegar a prezinhos, jardins e afins, nossas crianças já controlam os mecanismos complexos da língua falada. Como então explicar que elas se tornem adultas sem conhecerem as noções básicas da expressão escrita? Porque, para desespero de educadores, é exatamente isso o que acontece com embaraçosa freqüência.

Mas o que mudou no transcorrer desse processo de aprendizagem oral e escrita?

Mudou o método, mamãe. Mudou tudo, papai.

Aprender a falar foi tão fácil e a necessidade tão óbvia. Havia um mundo de palhaços caseiros, que faziam caretas, cantavam musiquinhas e repetiam dia após dia os mesmo sons, sem reprimendas, com incentivo genuíno e constante.

Entre canções, risos e tatibitates, confundiam-se e entrelaçavam-se a inseparável dupla prazer e aprendizado.

Ah, aquilo foi uma diversão!

Por que cargas d’águas então, de uma hora para outra, decidimos alterar o método utilizado para estimular nossas crianças?

Por que será que, sem aviso, sem motivo, abandonamos o posto de escudeiros desses guerreiros novatos que marcham, com seus tênis luminosos, pelas trilhas do conhecimento?

E por que os colocamos lá, no lugar estranho, entre quatro paredes desconhecidas e indiferentes?

Antes, o mundo (está bem, o quintal, o playground, a vizinhança). Agora, a visão limitada à lousa, ao caderno, à nuca do colega da frente.

Através da  janela, paisagens e promessas representam impossibilidades, lugar de não olhar, lugar de não estar, lugar de não aprender.

Presta atenção, Berê!
Chega de tantos por quês.
Pra que serve? Não importa.
O motivo? Irrelevante.
A matéria? Tanto faz.
Mas vai cair na prova de quinta.

De forma definitiva e inapelável divorciaram-se prazer e aprendizado. Ninguém sabe por que aprende aquilo que o obrigam a aprender.

Temos apenas uma possibilidade de salvação.

Esqueça teorias, processos e experiências relacionadas à educação formal.

Fale com os pequenos especialistas. Consulte as crianças.


Consultem as Crianças

Consultar as crianças? Essa é boa. O que seria consultar as crianças?

Convocá-las para reuniões no MEC, assistir suas palestras, solicitar planilhas comparativas?

Talvez não seja uma boa ideia.

Consultar as crianças não requer ouvidos ou atas de reunião. Requer espírito, mente aberta, requer a recuperação de nossos próprios estados infantis, requer encontrar o pensamento não viciado de nossa infância.

Somente consultando nossas crianças poderemos afinar nossos ouvidos emocionais e assimilar seus desejos, entender anseios, despertar interesses.

Somente consultando nossas crianças, saberemos participar de forma natural e efetiva do aprendizado de nossos meninos, de nossas meninas.

Somente consultando nossas crianças, abriremos torneiras de sensibilidade para os homens e mulheres de amanhã.

Porque o conhecimento é líquido. E essas crianças têm sede.




Mais desengonços sobre educação:
SEMENTES - Prazer em Conhecer


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Eita dia esquisito!

Imagem de Fábio Oliveira - melhor conhecido como Cranio

Eita dia esquisito!
A varanda atulhada de pardal
e no varal tem pendurado,
entre tardes e calcinhas,
um recorte de jornal

No jornal
tá lá escrito
(eu vejo e não acredito)
índio quer apito
é pra pular carnaval

Índio quer TV,
celu,
abadá
Índio quer guaraná
(melhor que aquela semente
cultivada pela gente
vinda lá do Pará)

Índio quer jogar este game
mas por mais que a gente teime
ninguém aprende a jogar

Aqui é bola quadrada,
aqui é jogo doente
A pelada é na calçada
no meio de tanta gente
Só depois dessa cachaça
dá pra seguir em frente

Lá no bar tá o sujeito
com seu martelo de pinga
Não tem grana
arruma briga
mexe com rapariga
Lá no bar tá o sujeito
que não tem amor à vida

Tem Cristo,
tem crucifixo
Não tem Jaci ou Tupã
Bem vindo pajé
Bem vindo encarnado xamã
Para índio sem apito,
o futuro não existe,
denunciado desamanhã

Eita dia esquisito!
No varal tá pendurado,
entregue ao vento
e à própria sorte,
um índio civilizado
no desventurado recorte

É um índio sem apito,
lá de cima,
cabra forte,
e seu segundo suicídio
pra fugir da mesma morte

sábado, 17 de dezembro de 2016

Bugalhos e Catraca de Alcatrão



Briga de foice no escuro
e você a ver navios?
Se o copo tá meio cheio
pra mim é copo vazio
Em briga de cachorro grande
vai-se logo o meu pavio

Se sou plebeu entre reis
 eu sou caolho entre cegos
Pra fazer essa tachinha
só chupando muito prego

Já comprei gato por lebre
eu já pisei no penico
Só falta chutar o balde
e a barraca num só bico

Agora é que são elas,
nessa rosa tem espinho
Onde você foi
amarrar o seu burrinho?
Bebeu daquela água
que não bebe o passarinho?

Além de secar gelo
e ensacar tanta fumaça,
pirou na batatinha,
oh grande mala sem alça?
O que terá o cu
a ver com suas calças?

Quando a porca torce o rabo
perde o fio do novelo
Primeiro salta do barco
depois deita o cabelo
Ontem João-sem-braço, 
hoje dor de cotovelo?

Se você confunde alhos
com conhaque de alcatrão
e bugalhos
com catraca de canhão,
não venha você agora
com essa prosa furada,
minha boca tá cansada
conversa com a minha mão

(Você já é grandinho
já sabe bem que o que faz,
mas por que essa mania
de levar tudo por trás?)



segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O Universo é Deus Pensando




Galileu vê a Terra
em movimento,
rompe fronteiras do tempo,
encontra Nicolau no bar

Tem ciência,
geometria,
tem vinho,
tem pão,
argumento,
tem motivo pra pensar

Nicolau e Galileu,
depois de comer,
beber,
arrotar,
pra fugir do pagamento
aceleram seus jumentos,
são pegos pelo radar

Dois cristãos truculentos,
seguindo seus juramentos
de viver para pregar,
disparam tabefe,
sermão,
água benta
e os levam pra interrogar

Dois cientistas,
um tormento,
mãos cruzadas no peito
como prontos pra rezar

Nicolau e Galileu,
de olho no bafômetro
na hora de confessar,
afrontam o firmamento
fronteira fixa no ar:

- Pra unir num só lamento
um grito,
unguento,
rosa dos ventos
e poeira estelar,
dirijo meus pensamentos
ao Deus deste momento
ao Deus de todo lugar
O universo é Deus pensando,
Deus é ação em pensamento,
Deus não age no altar

Deus ação e desencanto
já não teme ouvir o pranto
desta Terra nave-irmã
Órbita nossa
inacabada,
bandeira quadriculada
de nossa alma pagã

Deus criador de eclipses,
gira astros,
brande sóis
e galáxias,
e lá no jardim das acácias
acende estrelas anãs

Deus é origem,
é destruição
Deus joga pragas,
águas,
mágoas,
meteoros
sobre a boa e grata
civilização
O universo é Deus pensando,
pensamento é Deus agindo,
Deus movimento e ação

Deus não é um poste
torto,
pichado,
na Rua da Liberdade
Deus não está parado,
exposto,
crucificado
nas igrejas da cidade

Nem tente cair de joelhos
ou do salto
em sua calça de tergal
Porque apesar da vertigem
Deus escapou da Virgem
Ah, divino carnaval!

Deus é festa,
paz,
pecado
e regozijo
Deus é virtude,
é vício,
é crime,
é castigo
Deus é bem,
Deus é mal,
Deus sempre pensa contigo
no espaço sideral

Por isso,
eu, você e Nicolau,
por isso,
eu, você e Galileu,
 tolos em busca de nexo,
não somos mais que reflexo
do pensamento de Deus

domingo, 11 de dezembro de 2016

As Bonitinhas do Burguês


Carlos Schwabe (A Faun)

Minhas ideias
não são à prova de bala
Não atire!
Minhas ideias
não são
fonte de juventude
nem são
promessa de eternidade
Minhas ideias
adolescem,
convalescem,
envelhecem
lá na maternidade
(Falta fazer uma visita)

Minhas ideias tem
cinquenta e um
tons de luz
(enganei você)
Minhas ideias tem
quarenta e nove
tons de sombra
(Dois tons a mais,
bem feita a conta,
garante a paz
no meu faz-de-conta)

Minhas ideias,
às vezes,
quase sucumbem de vez
Minhas ideias
perderam o senso,
perderam o sono,
pagaram o mico
e a conta de todo mês
Minhas ideias
todas elas,
toleráveis,
impenetráveis celas
bonitinhas de burguês

Minhas ideias
quase sempre
presas na roda viva,
forjadas na aridez,
passaram buraco,
passaram roupa e trabalho
por fim passaram a vez

Mas ideias
renascidas
esquecidas de clichês
vão abrigar os olhos
de serpentes coloridas
colhidas na lucidez

Minhas ideias
hoje libertas
encontram sátiros,
Fauno,
Baco,
tem pacto de embriaguez
Prometem néctar,
ambrosia,
fantasia
e um carneiro montês

Minhas ideias
não eram minhas
Minhas ideias
eles criaram,
enfiaram,
na cabeça bem aqui
Então recolhi lembrança,
pensamento de criança,
de novo revivido
ressuscitei e parti

Agora,
por onde quer que eu ande,
naquele caminho grande
do Oiapoque ao Chui,
insiste, lateja o sangue
nascido lá no Rio Grande
nas veias deste guri





quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Paz Pax Pacem Peace


Na minha cidade tinha paralelepípedos



Na minha cidade tinha
paralelepípedos
Tinha paralelepípedos
na minha cidade

Quando a gente andava
de charrete
de bicicleta
de havaianas
de vaga-lume
e até caminhão de lata
não sentia paralelepípedos
Sentia
pa-
ra-
le-
le-
pí-
pe-
dos
Solavancos e
so-lavancos
entrecortavam sílabas
aceleravam as risadas
e guardavam os dias
dos tempos
idos

Na minha cidade tinha
paralelepípedos
Por eles
eu escorregava
em dia de chuva
em fuga
de beijo furtivo
Por eles
eu me desesperava
em busca de tempo
alento
e ônibus perdido

Neles
eu procurava
o reflexo molhado
estampado
por sob os vestidos

Na minha cidade tinha
paralelepípedos
e não esse preto piche de agora
sem caráter
sem humor
sem afeto
sem nada
Não esses casais
sem reflexo
que percorrem
a esteira árida
da madrugada

Na minha cidade tinha
paralelepípedos
Se passasse a baronesa
na praça do coronel,
queriam logo saber se a moça
de fato era feliz
Então assim se abriam
três caminhos de granito 
pras três meninas cuspidoras
presas no chafariz
Porque somente nelas
naquelas meninas sapecas
minha amada Satolep
de barbada supera Paris

Tinha paralelepípedos
na minha cidade
Coitados!
Paralelepípedos nem cabem na poesia
como caber nessa modernidade?





Outros de Satolep:

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Eu estou Errado



Incoerentes por Natureza

Em Satânicos e Visionários, Aldous Huxley diz que coerência é algo que não se pode cobrar do ser humano.

O autor de Admirável Mundo Novo afirma que homem e mulher se caracterizam, essencialmente, por se comportarem de forma incoerente. O que pensam pela manhã não é o que pensam à tarde nem à noite - mas podem voltar a pensar de madrugada.

Unidade de discurso, porém, não se apresenta como alvo inatingível. É bem possível que coerência se expresse de forma razoavelmente perceptível em nossas ideias, conceitos e opiniões.

Na maioria das vezes, com o mínimo de atenção e honestidade, somos capazes de manifestar nossos pensamentos dentro de uma linha condizente com manifestações e pensamentos anteriores.

A porca apenas torce o rabo quando se trata de unir discurso e prática.



Fala, José!

Eu raramente me exprimo na primeira pessoa aqui no blog, mas desta vez é inevitável e vou dizer por quê.

Acontece que, em certos dias de fúria, eu sofro terríveis recaídas e quebro minhas repetidas e não-publicadas promessas de não-publicação.

Ira, entre os pecados capitais, é daqueles que não dá para ignorar. Por isso e
xplico e me confesso agora.



Abra esse coraçãozinho aflito

Muitas vezes, desde a existência do Batalha, eu tomei a decisão de exibir apenas posts de poesia, versos e gracinhas - pequenas ternuras entrecortadas por inocentes considerações antropológicas, transcendentais e afetivas. Sem polêmica, sem enrosco, sem verdades inabaláveis.

Política? Política como se conhece hoje? Never more, querido diário.

No entanto basta uma notícia distorcida, uma opinião não-embasada, uma atmosfera de aparente injustiça, e lá se vão as promessas e as decisões definitivas.

Incoerente como todo homem e toda mulher, eu saco meu revólver de palavras e parto para a ofensiva com a certeza dos imbecis.

Terei salvação? Talvez se eu ouvir aquela vozinha límpida que emerge lá da consciência para dizer coisas assim:

"Meu bom e bem intencionado José, saiba que é justamente quando o impulso se sobrepõe ao razoável que o argumento boicota a causa."


Eu na Primeira Pessoa

Eu estou errado e não há outra maneira de dizer. Não posso usar outra pessoa que não a primeira. Não são os desengonçados que estão errados. Sou eu.

O erro - essa coisa tão humana quanto inadmissível - não reside em minhas convicções. Reside nos meus métodos e no inimigo percebido.

Posso lutar a melhor das guerras e ter mais nobre das intenções. Posso ser determinado e destemido. Mas usando armas erradas jamais vencerei. Investindo contra inimigos errados, derroto a mim mesmo.

É evidente que me refiro a esse interminável pseudo-debate travestido de política que ganhou as redes sociais. É nesse contexto que eu resolvi avaliar minhas nem tão esporádicas intervenções.

Veja, por exemplo, as agradáveis palavras que escolhi para acompanhar uma de minhas postagens no Facebook:


Só falta depois ter que ouvir: “Eu não disse que, depois da Dilma, a gente ia tirar todo mundo? Fora Temer!”
Sentar na janelinha, cara pálida? Agora, depois de assistir os 
outros empurrando o bonde?
Bem, seja vindo ao Fora Temer, mas o trem da história passou faz tempo.


Ignorem-se erros de concordância. Mesmo porque, ali, o erro acabou por dar sentido oposto ao desejado, uma vez que assistir os outros equivale a ajudar os outros.

Portanto, pela interpretação do post, com justiça, poderiam todos se sentar à janelinha.

Gramatiquices à parte, o fato é que não sou fiscal de passagem, tampouco maquinista desse trem. Ora, José, quem és tu - diz aquela vozinha - para direcionar o conforto de bundas de ocasião e o horário de convicções alheias?

Minha bunda e minhas convicções não mudaram - exceto por razões relativas à idade, gravidade, algumas leituras e observações.

Mas o que aquele tipo de postagem pode conseguir? Aliados? Aprovação dos meus pares de ideologias e verdades? Aplausos?

É mais provável que (como erros de concordância) o comentário agressivo acabe por provocar efeito contrário nos desafetos de opinião. A alusão arrogante ou sarcástica a determinado posicionamento tende a arraigar certezas e a adensar as nossas já sólidas fronteiras de intolerância.



Ironia e pernada a três por quatro

Não é a primeira vez que eu escrevo a respeito de nossas intermináveis e violentas discussões.

Não é a primeira vez que eu manifesto dúvida quanto à validade prática dessas discussões. Você já viu alguém mudar publicamente de opinião? Eu não vi meia-duzia.

Mas também não foi uma vez nem duas que eu ignorei o escrito e manifesto, encarnei um Dom Quixote tupiniquim e saí distribuindo pernada e ironia pelas áridas vastidões das linhas de tempo.

Ironia e pernada, veja só... 
Contra o inimigo errado, José? Bem coerente, não?

A verdade é que o verdadeiro inimigo se deleita com nossas rusgas. Ele detestaria se todos gritassem na mesma voz.

Mas - cumprindo uma promessa pré-postagem - do inimigo verdadeiro não falarei aqui. O que não significa que ele foi esquecido.



Mea Culpa

Por que esse mea culpa público e repentino?

Talvez pelo sonho de ser como aquele puxador de aplausos de filme americano. O sujeito que, depois do discurso, começa a bater palmas lenta e espaçadamente, até que a multidão se junte em aplausos efusivos e comoventes.

Admitindo o erro, eu acabaria por provocar - não uma onda de aplausos - mas uma onda de errados acenando com o erro admitido.

- Eu errei na pimenta - diria o anfitrião aos convidados.

- Eu errei na dopamina - diria um homem triste.

- Eu errei no terceiro acorde - diria um trompetista.

E, um a um, todos ergueriam os braços para dizer que erraram. Cada um a seu jeito. Errados, erros aprendidos, se possível perdoados, tentariam todos acertar dessa vez.

Sonhos grandiosos à parte, essa admissão do erro tem origem em um incômodo na consciência.


Vêm da lucidez que se amplia devagar e que permite, finalmente, perceber minha contribuição (ainda que pequena) para uma atmosfera de violência crescente.



Pavor e Cumplicidade

A violência verbal configura-se, por si mesma, um mal – algo que desvirtua aquilo que foi criado para o entendimento.

Mais do que isso, a violência verbal costuma se apresentar como mola propulsora de conflitos físicos, psicológicos e emocionais.

Contribuir, sob qualquer aspecto, para o crescimento da violência é algo que me causa pavor (e é certo que o mesmo acontece aos leitores do Batalha).

Esse pavor, então, é a verdadeira origem deste mea culpa.

Cúmplice da brutalidade? Espero que não mais. Vou insistir no caminho da brandura.

Não importa que outros não admitam (importa, mas a ausência de admissões alheias não deve pautar as minhas).

Não importa a não-realização de sonhos americanos com aplausos iniciados e acompanhados.

Não importa que outros discordem da tática da brandura. (Talvez estejam certos, talvez certa agressividade seja necessária e inevitável. A discussão não é nova e estimula o livre-pensar. Mas, novamente, é preciso não atingir vítimas e eventuais aliados na ilusão de atingir o inimigo.)

O que importa, mesmo, é o aprendizado tantas vezes desaprendido.

Violência gera violência. Não é possível combater o mal com o mal.

É preciso afeto. Ninguém vem para o meu lado por pernada e ironia.



Eu Errado

Estamos (quase) todos no mesmo barco furado, no mesmo mato sem cachorro, cachorros perdidos na mesma procissão.

Exceto por alguns (mais ou menos) identificáveis canalhas, todos nós pensamos lutar pelos objetivos corretos e justos.

Acreditamos que nossas proposições carregam a semente da verdade, a pedra de toque da nossa história, a cura definitiva para a dor da humanidade.

Estamos todos errados?

Não sei.

Mas eu estou.

Eu estou muito errado.



Desengonços sobre o mesmo tema:

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Afagar dando patada



O que será que deu
na cabeça dessa gente?
Acreditam que o mundo
se iniciou num repente?
Será que não souberam
das trevas de antigamente,
do falar mesmo sem voz,
do morder mesmo sem dente?
Adormecidos no passado
e agora conscientes?

Depois de terminado
o único livro da estante,
a miséria das calçadas
basta lavar com sangue,
afagar dando patada
e debater com debutantes

Nada pra quem tem nada!
Morram índios,
negros,
pobres,
gays
e retirantes!

Lá vem eles,
destemidos militantes
Erguem bandeiras,
jornais,
fazem levantes
Grana pra quem tem grana,
tudo pra quem tem bastante

Naquele
país distante,
daqueles tempos
sombrios,
aquele povo,
antes cordial,
antes gentil,
mandou o velho decoro
pra puta que pariu
Depois aproveitou a rima,
o clima,
as ordens vindas de cima,
e mandou também o Brasil

domingo, 6 de novembro de 2016

Essa Mente Exposta


Pegue o machado
enferrujado
debaixo da cama
e tire um naco
bem caprichado
da caixa craniana

Entre as meninges
plante a semente
que sempre germina
abrigada do clima
em tenro ambiente

Cuida, rega, capina
carrega na dopamina
Uma maçã pros duendes,
um pouco de vida por cima,
um tanto do diferente,
um coro de descontentes
e loucos pra fazer rima

Trova, improviso, repente
germinam dentro da gente
Hoje a festa não termina,
tem canto, tem sol nascente
Tem jovens de antigamente
escapando da rotina
dos enganos da retina
na fenda fértil na mente