sábado, 30 de setembro de 2017

Você não tem espelho em casa?




Espelho, espelho meu

O espelho é artefato recente na história da humanidade. Foi apenas em 1835 que o químico alemão Justus von Liebig aplicou uma fina camada de prata metálica sobre uma lâmina de vidro e finalmente descobriu a razão do seu insucesso com as loiras de Munique.

Antes do método criado por Justus, o que faziam as mulheres para saber se chapéus e vestidos de baile lhes caíam bem?

Coitadas! Permaneciam eternamente sujeitas ao fosco reflexo das superfícies de bronze, às imprecisas imagens no lago ou - mais aterrador - à opinião das amigas.

- Lindo vestido.

- Obrigada.

- Só precisa alargar um pouco. Na cintura. Uns oito dedinhos.

- Oito dedos?

- Nove, no máximo. De cada lado.


Além do reflexo

A criação do espelho deve ter representado um alívio para os vaidosos do passado. Ou uma desilusão, como no caso de Justus, o Feioso.

Mas para a Igreja, principalmente durante à inquisição, bruxas e demônios se escondiam lá no fundo daquele vidro de refletir.

Espelho é passagem para mistérios - é o que diziam os místicos.

O fato é que a partir de Justus, os endinheirados de antanho adquiriram o direto ao próprio julgamento.

Já camponeses, acendedores de postes, caçadores de ratos e cortadores de gelo precisaram esperar pela popularização do espelho para conferir as marcas que a jornada de escravidão havia deixado.



Autoconhecimento

Não deve ter sido pouca coisa o encontro com a própria face. Imagine o significado e as reações daquele momento:

Espantar-se com a própria expressão de espanto.

Reconhecer-se devagar.

Examinar-se sob diferentes ângulos.

Fazer careta, sorrir, franzir a testa.

Desviar os olhos e voltá-los imediatamente na tentativa de surpreender a imagem. 

Investigar a cor dos olhos, o tamanho do nariz, o estado dos dentes, a surpreendente calvice.

Lamentar rugas impensadas.

Entender por que nunca fomos convidados para os bailes da corte ou para o BBB.



Quem é aquele cara?


picture by John William Waterhouse
Sabemos que existem sombras para as sombras das coisas, como um reflexo visto no espelho de um espelho. Sabemos que existem círculos dentro de círculos e dimensões além de dimensões. A própria realidade é uma sombra, somente uma aparência aceita por aqueles que evitam o que está além. - Louis L'amour


Mesmo hoje, com espelhos onipresentes, da fachada de gosto duvidoso aos óculos idem, quem é que nunca acordou pela manhã, foi escovar os dentes e paralisou-se entre o molar e incisivo?

Você conhece a sensação. É assim como que despertar da realidade. Aquele assombro emoldurado da manhã.

Está tudo certo, você está acordado, o sol já nasceu, o vizinho já está estourando os tímpanos com axé, mas... Quem é aquele que te olha através do espelho?

Não. Aquele que te olha não é você!

Dizendo melhor – ou pior -, aquele é que é você. Ali parado, com escovação a meio, ele te informa que os reflexos te enganaram vida afora.

Não que não seja o mesmo rosto.

É.

Igualzinho.

Marca de travesseiro, cabelos em emaranhado quântico, um mosquito amassado na testa.

Mas por alguns segundos você baixa a escova e a guarda. Pela primeira vez, a honestidade o faz perceber que o seu queixo é torto. Triangular, mas triângulo isósceles. Você começa a entender a relação entre beleza e simetria. Com um queixo desses, qualquer harmonia se esvai.

Se golpe na auto-estima for pior que golpe no queixo, você terá motivos para enxaguar a boca e esquecer o espelho por um tempo.


Do outro lado do espelho

Por pouco tempo. Em dois minutos você está de volta. A irresistível atração dos espelhos. A angústia em se ver novamente.

Então o assombro é ainda maior. 

Basta esse novo encontro para uma certeza se manifestar. Ali está a realidade, exposta de uma única vez, sem avisos ou toques de despertar.

Sim. Você não é você. Você é apenas o reflexo daquele que te fita lá do mundo real, lá onde as coisas verdadeiras acontecem.

É preciso chegar naquele lugar.

Você estica o braço.

Muita cautela para tocar essas superfícies.

Você percebe que o braço vai atravessar um portal e encontrar a verdade de todas as aparências.

O sujeito dentro do espelho também estica o braço. Quem chegará primeiro do lado de lá ou de cá?

Vocês se observam por um longo segundo. Um linha de suor desce pela testa. Ambos a enxugam com o dorso da mão.

Prestes a tocar (atravessar?) a superfície, você não suporta mais a densidade daquele olhar atônito, o tremor da mão que da sua se aproxima.

Então você fecha os olhos. Seja o que Deus quiser.

Quando os abre, percebe que tudo está igual e que tudo mudou.

O espelho permanece lá, na mesma parede azulejada. Mas não há reflexo. Apenas a fina camada de prata que Justus von Liebig um dia inventou de aplicar.




Pós-mergulho

Depois da experiência nas profundezas do espelho, você passa a prescindir de simetrias.

Você desdenha o baile da corte e seus vestidos.

Você já sabe envelhecer com doçura e aceita a fluidez do tempo na superfície de vidro e prata.

Você já consegue enxergar no belo o que ele tem de efêmero.

Você aprendeu que aparência é ilusão.

Você viu além da visão, ouviu o inaudível, tocou o intocável.

Porque você não mergulhou no lago como Narciso. O lago mergulhou em você.



Além de você


Nesse caso - e apenas nesse caso - você poderá ser considerado um iniciado em espelhos.

Mesmo sem perguntas, você já entendeu por que, para os antigos, espelho era portal para outros mundos.

Você vê além do reflexo, além do queixo.

Você já sabe manter o olho atento àquele sujeito surpreso, do outro lado, que te observa.

Assim, sem escovas, incisivos e queixos, de vez em quando você se vê pelo olho que é seu.

Não é mais como você se via, não é como os outros te vêem. É como você é.