domingo, 11 de setembro de 2016

Caravelas Invisíveis


"A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam.”

(José Saramago - Ensaio sobre a Cegueira)


Litoral das Américas, 1492. Caravelas espanholas aproximam-se da costa para conquistar o Novo Mundo.

Na praia, a dez passos do mar, cerca de trinta homens e mulheres dançam em círculo.

No centro, sentado na areia, o velho pajé fuma um cachimbo de bambu.

Estão nus. Em algumas cabeças, adornos de penas coloridas. Em alguns lábios, piercings de madeira. Em todos os pés, a hipnose dos ritmos da selva.

Nas caravelas, os espanhóis já apontam seus binóculos para os homens e mulheres nus (para as mulheres, na verdade).

Uns sacam seus valiosos espelhinhos de troca e penteiam o bigode. Outros limpam as unhas com a espada e tiram meleca do nariz.


As caravelas se aproximam. Lá da praia ninguém vê.

Na areia, o círculo se desfaz. Agora, sentados junto ao mar, marola nas canelas, homens e mulheres contemplam a tarde cintilar no imenso azul.

Crianças correm nuas, saltam sobre pernas adultas, riem daquelas águas todas.

As caravelas se aproximam. Mas da praia ninguém vê.

Marinheiros já dispensam seus binóculos, a horda se agita, o capitão berra últimas recomendações.

Na areia, mesmo as crianças serenam, o sol se recolhe, o horizonte se define.


As caravelas se aproximam, mas da praia ninguém vê.

Ergue-se então o pajé. Um olho perscruta a imensidão. O outro, as coisas primeiras, urgentes, aquelas que vem dos mistérios além-mar.


Com a compreensão ancestral de tudo que se move, o pajé observa as depressões, as fendas movediças que na água se abrem. O invisível corta o mar, vem ao encontro deles. E da praia ninguém vê?

O pajé fecha os olhos porque é preciso esquecer alguma coisa. É preciso desaprender o que sabe, desver o que já viu. O que cheirou, descheirar. O que ouviu, desouvir.

Tem de voltar a ser criança, ao momento que viu pela primeira vez o urucum e os espíritos da floresta. Voltar ao momento em ainda podia ver o impossível.

Quando abre os olhos, o pajé vê.

Vê aqueles barcos, com suas velas abertas para o céu.

- Vejam! – grita o velho – Barcos! Imensos! Grandes asas brancas pro céu!

Homens e mulheres se entreolham, abaixam as cabeças, dão de ombros, murmuram. O pobre pajé está sucumbindo à idade. Agora ele vê o impossível.

- Ali – insiste o velho – onde o mar se fende.

Por respeito, todos se voltam para as fendas no mar. Mas são apenas fendas. Caravela ninguém vê.

Quando os homens, crianças e mulheres nus resolver dar ouvidos ao pajé, é tarde demais.

Engodo, violência, morte e escravidão. Sucumbem as florestas, suas criaturas e seus deuses. Homens de longe vieram dizer o que é certo, vieram dizer o que se deve ver e no que se deve acreditar.


Agora, com a marca das botas impressas na areia da praia, os espanhóis se recusam a ser invisíveis.

Nas próximas centenas de anos, eles ainda estarão por aqui.

Mas da praia ninguém vê.



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