quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Relógio Inquebrável


Salvador Dali


Um relógio inquebrável
não perdoa
atraso
pecado
pune
alegria
Um relógio inquebrável
não tolera
não abranda
não recua
não alivia
Um relógio inquebrável
bate
rebate
fustiga
o dia

Um relógio inquebrável
implacável
marcha
calça
coturnos
Um relógio inquebrável
ágil
saca
ponteiros
brande
futuros

Um relógio inquebrável
desconhece
o riso
ignora
o pranto
Um relógio inquebrável
não entende
vida
paixão
encanto
Um relógio inquebrável
divide
o dia
em frações
de espanto

Um relógio inquebrável
oprime
enquadra
sonhos
Um relógio inquebrável
esvazia
e fecha
homens
Um relógio inquebrável
enche
usina
e manicômios

Um relógio inquebrável
amável
agrada
alisa
escraviza
Um relógio inquebrável
faz da vida
morte
amortece
a vida


Um relógio inquebrável
ligeiro
e lento
Um relógio inquebrável
a favor
do vento
Um relógio inquebrável
caminha
duro
e eterno
no cristal do tempo

Um relógio inquebrável
desses de jogar na parede
desses de se fazer em pedaços





domingo, 1 de outubro de 2017

O homem que não mora aqui

Image credit: Ales aka Dust To Ashes

Aquele que deixou para trás a terra natal e foi se procurar em outras bandas saberá do que estou falando.

Sim, você experimentou o que queria, conheceu lugares e pessoas, aprendeu o que não aprenderia em casa ou nas aulas de dona Celestina. Você entendeu melhor o mundo. Você cresceu um tanto.


Cada mudança, nova vida. É como reencarnar várias vezes na mesma existência.

Outra cidade, outros amigos, outros horários, outros prazeres, outras vitórias.

Também algumas derrotas, alguns perigos, algumas lágrimas - apenas o suficiente para te tornar mais forte e sensível, mais humano, mais preparado para reencarnações vindouras.

Com tais acréscimos, você deveria se sentir uma pessoa mais completa, não é?

Não é. 
Se há alguma coisa que você jamais vai saborear é a sensação de completude.

Você vive onde escolheu viver, trabalha no que deseja, tem os amigos que elegeu. Mas o que fazer com as lacunas deixadas pela vida antes vivida, pelas coisas que antes fazia e pelos amigos de outros tempos?

Você sente saudade, saudade incorporada à rotina - espécie de dor acostumada.

Dizem que a dor é ainda pior para quem fica.


Tudo permanece igual, a paisagem é a mesma, o café está na mesa, o rádio ainda sintoniza a Tupanci - ladrão por ladrão vote em Tufy Salomão.

Mas alguém está faltando. Ele sempre esteve aqui. Não mais está.



Como lidar com a saudade que os outros sentem? Como aplacar a dor se a dor está em outro lugar?

Você começa a perceber que nas últimas visitas à mãe, ela não chorou na despedida. Ela não se sente mais a sua ausência?

Ao contrário. Sente do mesmo jeitinho que sentiu naquele dia que você, quase um menino, disse que era chegada a hora de voar.

Uma mãe sem lágrimas não significa ausência de dor, você sabe. As lágrimas da mãe distante correm por um rio retraído, lá dentro dela, a alimentar uma amargura.

É por isso que, naquele abraço, você já nem tem o que enxugar.

Acontece com outros que o viram crescer. Neles a saudade tende a permanecer desperta, com aquele agravante - o dos olhos secos. Eles testemunharam as primeiros passos da criança, as aflições do adolescente e viram o homem partir.

E o que dizer da saudade esquecida? Da saudade dos mais novos que ficaram, daqueles que o conheceram adulto, uns dos tantos adultos que os cercavam?

São os que sofrem menos. Na memória deles, você vai se tornando uma imagem opaca, alguém que só existe de vez em quando. Aquele que mora longe. Que sempre esteve onde eles não estavam.

Você, por ilusão ou descuido, pensou que os laços se mantivessem por si mesmos. Costumava guardá-los no travesseiro, lugar para acalantos e aflições. Ou em algum lugar mágico do futuro - lá onde todos os amores se encontram para apagar separações.

Por isso laços e amores ainda insistem em aparecer no meio da noite, naquela hora insone em que as distâncias se expandem.

São implacáveis as distâncias. Sinuosas. Mas é sua vida que pavimenta essa rodovia para o intenso tráfego de novidades, descobertas, saberes e algumas culpas.

Sim, você não é completo. Nunca será.

O homem que se move pelas lonjuras vai deixando pedaços de si mesmo pelo acostamento.

Já é tarde para recolhê-los. Seus pedaços misturaram-se à paisagem sob os passos rápidos do tempo. São poeira do passado, pairam sobre as solidões.

Não há remorso.

As pontes estão queimadas.

Sem mais retorno para o comboio das ausências.

No permanecer e no partir, é incompleta a vida. Incompleto, assombrado por seus amores, você escolheu caminhar.








sábado, 30 de setembro de 2017

Você não tem espelho em casa?




Espelho, espelho meu

O espelho é artefato recente na história da humanidade. Foi apenas em 1835 que o químico alemão Justus von Liebig aplicou uma fina camada de prata metálica sobre uma lâmina de vidro e finalmente descobriu a razão do seu insucesso com as loiras de Munique.

Antes do método criado por Justus, o que faziam as mulheres para saber se chapéus e vestidos de baile lhes caíam bem?

Coitadas! Permaneciam eternamente sujeitas ao fosco reflexo das superfícies de bronze, às imprecisas imagens no lago ou - mais aterrador - à opinião das amigas.

- Lindo vestido.

- Obrigada.

- Só precisa alargar um pouco. Na cintura. Uns oito dedinhos.

- Oito dedos?

- Nove, no máximo. De cada lado.


Além do reflexo

A criação do espelho deve ter representado um alívio para os vaidosos do passado. Ou uma desilusão, como no caso de Justus, o Feioso.

Mas para a Igreja, principalmente durante à inquisição, bruxas e demônios se escondiam lá no fundo daquele vidro de refletir.

Espelho é passagem para mistérios - é o que diziam os místicos.

O fato é que a partir de Justus, os endinheirados de antanho adquiriram o direto ao próprio julgamento.

Já camponeses, acendedores de postes, caçadores de ratos e cortadores de gelo precisaram esperar pela popularização do espelho para conferir as marcas que a jornada de escravidão havia deixado.



Autoconhecimento

Não deve ter sido pouca coisa o encontro com a própria face. Imagine o significado e as reações daquele momento:

Espantar-se com a própria expressão de espanto.

Reconhecer-se devagar.

Examinar-se sob diferentes ângulos.

Fazer careta, sorrir, franzir a testa.

Desviar os olhos e voltá-los imediatamente na tentativa de surpreender a imagem. 

Investigar a cor dos olhos, o tamanho do nariz, o estado dos dentes, a surpreendente calvice.

Lamentar rugas impensadas.

Entender por que nunca fomos convidados para os bailes da corte ou para o BBB.



Quem é aquele cara?


picture by John William Waterhouse
Sabemos que existem sombras para as sombras das coisas, como um reflexo visto no espelho de um espelho. Sabemos que existem círculos dentro de círculos e dimensões além de dimensões. A própria realidade é uma sombra, somente uma aparência aceita por aqueles que evitam o que está além. - Louis L'amour


Mesmo hoje, com espelhos onipresentes, da fachada de gosto duvidoso aos óculos idem, quem é que nunca acordou pela manhã, foi escovar os dentes e paralisou-se entre o molar e incisivo?

Você conhece a sensação. É assim como que despertar da realidade. Aquele assombro emoldurado da manhã.

Está tudo certo, você está acordado, o sol já nasceu, o vizinho já está estourando os tímpanos com axé, mas... Quem é aquele que te olha através do espelho?

Não. Aquele que te olha não é você!

Dizendo melhor – ou pior -, aquele é que é você. Ali parado, com escovação a meio, ele te informa que os reflexos te enganaram vida afora.

Não que não seja o mesmo rosto.

É.

Igualzinho.

Marca de travesseiro, cabelos em emaranhado quântico, um mosquito amassado na testa.

Mas por alguns segundos você baixa a escova e a guarda. Pela primeira vez, a honestidade o faz perceber que o seu queixo é torto. Triangular, mas triângulo isósceles. Você começa a entender a relação entre beleza e simetria. Com um queixo desses, qualquer harmonia se esvai.

Se golpe na auto-estima for pior que golpe no queixo, você terá motivos para enxaguar a boca e esquecer o espelho por um tempo.


Do outro lado do espelho

Por pouco tempo. Em dois minutos você está de volta. A irresistível atração dos espelhos. A angústia em se ver novamente.

Então o assombro é ainda maior. 

Basta esse novo encontro para uma certeza se manifestar. Ali está a realidade, exposta de uma única vez, sem avisos ou toques de despertar.

Sim. Você não é você. Você é apenas o reflexo daquele que te fita lá do mundo real, lá onde as coisas verdadeiras acontecem.

É preciso chegar naquele lugar.

Você estica o braço.

Muita cautela para tocar essas superfícies.

Você percebe que o braço vai atravessar um portal e encontrar a verdade de todas as aparências.

O sujeito dentro do espelho também estica o braço. Quem chegará primeiro do lado de lá ou de cá?

Vocês se observam por um longo segundo. Um linha de suor desce pela testa. Ambos a enxugam com o dorso da mão.

Prestes a tocar (atravessar?) a superfície, você não suporta mais a densidade daquele olhar atônito, o tremor da mão que da sua se aproxima.

Então você fecha os olhos. Seja o que Deus quiser.

Quando os abre, percebe que tudo está igual e que tudo mudou.

O espelho permanece lá, na mesma parede azulejada. Mas não há reflexo. Apenas a fina camada de prata que Justus von Liebig um dia inventou de aplicar.




Pós-mergulho

Depois da experiência nas profundezas do espelho, você passa a prescindir de simetrias.

Você desdenha o baile da corte e seus vestidos.

Você já sabe envelhecer com doçura e aceita a fluidez do tempo na superfície de vidro e prata.

Você já consegue enxergar no belo o que ele tem de efêmero.

Você aprendeu que aparência é ilusão.

Você viu além da visão, ouviu o inaudível, tocou o intocável.

Porque você não mergulhou no lago como Narciso. O lago mergulhou em você.



Além de você


Nesse caso - e apenas nesse caso - você poderá ser considerado um iniciado em espelhos.

Mesmo sem perguntas, você já entendeu por que, para os antigos, espelho era portal para outros mundos.

Você vê além do reflexo, além do queixo.

Você já sabe manter o olho atento àquele sujeito surpreso, do outro lado, que te observa.

Assim, sem escovas, incisivos e queixos, de vez em quando você se vê pelo olho que é seu.

Não é mais como você se via, não é como os outros te vêem. É como você é.



quarta-feira, 12 de julho de 2017

Vinho, azeite, incenso e tapete


Repara
Tem uma fresta
de espera
embaixo da porta
Repara
Tem janela aberta
disco na vitrola
e fumaça na chaminé
Repara
Tem dois olhos negros
tem sorriso e graça
tem promessa na mulher
Repara
Tem a mesa posta
tem talher de festa
tem o vinho certo
(tinto - lá de Bento)
Repara
Tem azeite virgem
tem incenso aceso
tem lareira em brasa
para arder em beijos
Repara
Tem sorriso ébrio
citação de versos
que não se aprende
no ensino médio
Repara
Tem botão
tem zíper
colchete
tem pele roçando
na pele
e coçando no tapete
Repara
Tem um rio com perfume
- é almíscar
com gosto
- é néctar
com toque
- é cetim
com som
- é deleite
Repara
Tem risos
gemidos
tremores
tem um rio
cheio de amores
pra ninguém morrer de sede




sábado, 25 de março de 2017

No meio desses silêncios

Imagem Jodoh Kristen

Silenciosa boca


No ponto final,
uma vírgula
O que importa
ficou por falar
Como acreditar nesta língua
que contradiz o olhar?


Silencioso peito

Vem em pausas,
titubeios,
pobre coração inquieto
Deixa frase pelo meio,
cai de quatro,
de joelhos,
se lambuza de afeto
Coração,
cheio de freios,
tenta traduzir anseios
em seu próprio dialeto


Silencioso

Eu falo pouco
se devo falar
o que penso
Eu falo pouco
e o pouco que falo
é bobagem,
Preste,
  darling, 
atenção nos meus silêncios



sexta-feira, 24 de março de 2017

Tarzan contra o Mundaréu


Quando Tarzan vê a selva
de aço,
de asco
e dinheiro,
a cidade abafa o grito
de ira,
revolta,
desespero

Não há grito
que se ouça,
palavras
não são ouvidas
porque nesse surdo
faz-de-conta
de miséria dividida
cada um vai preocupado
em cuidar da própria vida

Passa carro
Passa batom
Passa gravata
Gira brinquedo de corda,
esta selva é dos primatas
Bicho aqui não sobrevive
sem rodar em quatro rodas,
sem andar em duas patas

Tarzan sobe no poste
pra assistir ao mundaréu
Tem gente comprando pano,
plástico,
enganos,
papel
Tudo bem planejado
pra tal viagem pro céu

Em sacolas,
vitrines
e olhos de espanto,
vê sonho,
engodo,
sorriso
e par de tamanco
Cada mulher,
um vazio
cada homem um desencanto

Tarzan salta pra calçada,
hesita,
respira
Cata seus carrapatos,
murmura
matuta,
admira

Tarzan!
Krig ha,
Rei dos Macacos,
ali está o seu retrato,
um manequim
e mentiras

Tarzan,
acocorado,
na vitrine refletido,
percebe que está pelado,
que gente
usa sapato
e desodorante vencido

Ei, Tarzan,
bicho abatido!
 Forje meio sorriso
e cubra suas pudendas

Ei, Tarzan
bicho esquisito!
Este mundo está à venda
Se já sabe do vexame,
leve aqui pra sua Jane
linda lingerie de renda,
uma penca de vestidos