sábado, 25 de junho de 2016

Nós Não Vamos Morrer



O envelhecimento é uma doença

Esse é o diagnóstico dos cientistas depois de estudar certas espécies marítimas que nunca envelhecem, que não morrem por causas naturais, que vivas permanecerão até que um tubarão as devore.

Para curar a doença envelhecimento, para que humanos sejam eternos, a Ciência vem realizando variadas experiências nas mais diversas áreas de conhecimento.

Enquanto você deixa seu suor na academia, bebe um shake no almoço ou passa um Rugol para adiar as evidências, geneticistas vasculham cromossomos para encontrar o segredo da imortalidade. Muitos afirmam que, em algumas poucas décadas, a humanidade estará livre do envelhecimento e da morte.


Peças Sobressalentes e Insubstituíveis Emoções

Em paralelo às pesquisas genéticas, avança-se no caminho da produção de órgãos e membros sintéticos. Já é possível prever que impressoras 3D desempenharão um importante papel no palco da imortalidade.

Fígados, rins, corações, pernas, braços, colunas, crânios – eis algumas de nossas peças de reposição.


Para atividades diversas, membros portáteis. Pernas para correr, para saltar ou pernas para rodar. Braços para alcançar, para erguer, braços com câmeras para vasculhar.

Esse mecanismo renovável, esse corpo cada vez mais preciso e perene, exigirá um controle também perene e preciso. Por isso, o cérebro não pode se restringir aos limites da natureza. O cérebro aguarda por sua otimização.

Para atender à essa demanda, acena-se com a iminente substituição de neurônios por chips. Não mais conexões neuronais, mas circuitos eletrônicos.

Eis a inevitável pergunta: qual o limite para a substituição de neurônios? Será que, a partir de determinado percentual de chips implantados, essa espécie ainda será considerada humana?

Mas as possibilidades vão além. Já se trabalha com a hipótese de radicalização do conceito de homem-máquina. A transferência de cérebros humanos para receptores robóticos será realidade em um futuro nem tão distante.

Nessa trilha para o cibernético, o frágil corpo orgânico se tornará obsoleto e teremos que nos habituar à perda de alguns sentidos, à anestesia de sentimentos e a uma nova e modificada noção de ser humano.


O Fim do Corpo Físico

Se percorrermos mais alguns passos na linha do tempo, assistiremos ao fim das fronteiras físicas. O cérebro humano deixará de se comportar como matéria para se comportar como banco de dados virtual.

O upload de conhecimentos, memórias, consciência e personalidade permitirá o uso de avatares holográficos ou HDs de computadores como recipientes da mente.

Segundo o físico Michio Kaku em seu livro The Future of the Mind, com as conexões entre neurônios decompostas em dados, a mente poderá viajar na velocidade da luz:

“Embora possa demorar séculos para o feixe de luz chegar ao destino, do ponto de vista da mente sendo transmitida, a viagem seria instantânea”.

A imortalidade, antes possibilidade remota, agora merece o status de concreta probabilidade. 
Não seria por outro motivo que as pesquisas se estendem por áreas das mais distintas. Neurologia, ciência da computação, nanotecnologia, genética, biotecnologia, engenharia, filosofia, psicologia, entre outras, são áreas diretamente envolvidas nessa força-tarefa pelo eterno.


Conflitos Eternos

O primeiro e mais evidente conflito, como sempre, origina-se nas condições financeiras do candidato a imortal. Quem serão os beneficiados por genes milagrosos, nano robôs, membros artificiais e avatares?

Não é difícil prever um cenário no qual os endinheirados do mundo serão os únicos a caminhar eternamente pelos campos do Senhor. Aos demais, reles criaturas presas na fronteira de suas vidas efêmeras, caberá a marginalidade e a subserviência à elite imortal.

Nesse panorama, a venda e tráfico de peças sobressalentes de segunda mão tendem a incrementar o comércio nas periferias da eternidade.


Formigas Mortais

O Conde Fosca, personagem de Simone de Beauvoir em Todos os Homens são Mortais, adquire a imortalidade ao beber uma poção mágica (previamente testada em um rato).

Fosca testemunha o infindável ciclo de vida e morte de amigos, esposas, filhos e netos. Aos poucos, começa a perceber esses serezinhos frágeis como formigas, como coadjuvantes de uma história que eles nunca conhecerão por completo. Com suas poucas dezenas de anos para viver, as formiguinhas merecem pouco mais do que desprezo.

Caminhando sobre o tapete vermelho da eternidade, Fosca atravessa os séculos como eminência parda de personagens históricos. Não fosse ele imortal, Lênin e Robespierre perderiam um importante interlocutor e as revoluções Russa e Francesa não terminariam da mesma forma.

Mas depois de passar por levantes, manifestos e revoluções - fatos que sacudiram o mundo dos mortais -, esses acontecimentos começam a se apresentar ao conde como meros distúrbios para sua inesgotável rotina.


Fosca conclui que revoluções são inúteis e que a História é uma sucessão de repetições trágicas e sem sentido.

Um imortal assim, solitário, um dia vai acabar por desejar a morte - esse bálsamo que lhe foi retirado.

Ocorre a Fosca que, em centenas ou milhares de anos, ele será o único ser vivo a habitar a Terra.


Além daquele rato, é claro.


A Morte de um Imortal

Ao contrário do Conde Fosca, quando se fala em imortalidade, não se exclui a ideia de morte (pelo menos não enquanto a vida precisar de recipientes físicos para se manter).

O paradoxo se explica porque alguém sempre poderá morrer de um acidente grave, de um atentado, ou durante a indevida formatação de um HD.

Se, entre os mortais - portanto esperada -, a morte exibe-se como acontecimento trágico, imagine a comoção na morte de um imortal.

Por isso, entre aqueles que alcançarem a dádiva perpétua, o temor ao fim acidental ou criminoso pode fazer da eternidade uma constante busca por autoproteção.

A possibilidade de se findar em um instante aquilo que poderia durar para sempre e a consciência da fragilidade da matéria (orgânica ou sintética) devem retirar o que há de mais vital na existência: o sabor da aventura.

E aí está mais um dos contrassensos da imortalidade: o eterno teme o fim como nem mesmo o transitório costuma temer.



A Eternidade em Desencanto

No primeiro contato com o conde de Simone de Beauvoir, o leitor o encontra estirado em uma espreguiçadeira de hotel.

Desencantando com o curso da vida e da história, faça chuva ou faça sol, Fosca permanece no mesmo lugar por semanas a fio.

Fosca percebe que perdeu combustível vital.


Sem a morte como limite para todos os planos e realizações, nada realmente se planeja ou realiza.

Sem a morte, o fogo se extingue, a aventura se apequena, a alma se cristaliza.

Fosca percebe que sem morte não há vida.



Uma Questão de Escolha

É de se esperar que, mesmo ao alcance, nem todos desejem a imortalidade. Assim, em uma mesma família, sempre haverá aqueles satisfeitos com uma vida passageira e suas suficientes dezenas de anos.

Então, entre pais e filhos, entre marido e mulher, entre irmãos, entre amigos, as diferentes escolhas (mortal ou imortal?) tendem a criar um permanente conflito. Como pais imortais poderão aceitar que um filho rejeite a imortalidade?

Para muitos daqueles que optarem pela imortalidade, será insustentável o peso dos séculos, a história sempre cíclica e a presença de um eu eterno e, em verdade, imutável.


O desejo pelo fim um dia chegará.



Desengonços do mesmo naipe:

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Esquivas de Serpente


Vivia de lirismos,
audácias
e esquivas de serpente
Evitava
vergões de aço,
abraços,
frituras,
casa de parente
Rejeitava
agruras,
queixumes,
bons costumes,
perfume
e o lugar comum dessa gente

Sorrateiro, entre missas,
entrava nas catedrais
Pedia a São Francisco
numa língua de pardais:
- Você distrai o bispo,
os ricos
e meia-dúzia de cardeais
Eu vou roubar o dízimo,
beber água do batismo,
e refletir os vitrais
(Porque homem de siso
sabe o que é preciso
para agradar ao Pai)

Sóbrio, entre bêbados,
entrava nos botequins
Falava a língua deles,
russo, alemão, mandarim
Pedia água da torneira,
palito,
alguns amendoins
Depois, de barriga cheia,
subia na cadeira
pra recitar Bakunin

Romântico, entre flores,
entrava pelos quintais
Ouvia orquídeas,
miosótis,
e até cravos banais
Em cada passo,
os pássaros
reconheciam os sinais
Cantavam,
polinizavam,
exibiam as feridas,
desprezavam a vida
dos homens normais


Desengonços do mesmo naipe: