sábado, 11 de outubro de 2014

Jovem, quem é você no Jogo do Bicho?


"Não confie em ninguém com mais de trinta anos
Não confie em ninguém com mais de trinta cruzeiros
O professor tem mais de trinta conselhos
Mas ele tem mais de trinta, mais de trinta
mais de trinta
Não confie em ninguém com mais de trinta ternos
Não acredite em ninguém com mais de trinta vestidos
O diretor quer mais de trinta minutos
Pra dirigir sua vida, a sua vida
A sua vida"
(Marcos Vale)


Juventude sempre foi sinônimo de rebeldia, 
de questionamento da realidade imposta, de luta contra o pensamento vigente e o comportamento padrão.

Jovens têm a coragem de repensar a realidade e rebelam-se contra a sociedade que os adultos oferecem, não seguem normas sem sentido, não aceitam idéias sem filtrar.

Jovens procuram a verdade além do que lhes dizem, além do que está escrito e mostrado, ousam anunciar que o reino todo - e não apenas o rei - está nu.

No fundo, dizem apenas o óbvio, mas o óbvio que outros foram desensinados a perceber.

O jovem contestador é aquele que não se encaixa nesses bilhões de engrenagens periféricas que giram em torno de um eixo torto chamado Consumo.

O jovem contestador não segue a bíblia do dinheiro, não idolatra o deus maior das multidões.



O Jovem Contestador e a Arte

O jovem contestador interessa-se pelo mundo e pela vida. Ele entende que a arte tem sim uma função primordial para o homem. Apenas pela arte será possível acessar aquelas realidades que lhe foram amputadas.

Manoel de Barros disse que “o poema é antes de tudo um inutensílio”. Manoel certamente tem suas desrazões para assim dizer, mas essa é a segunda vez que discordarei do poeta (a primeira foi em homem pássaro).

Discordarei, Manoel, para concordar. Porque você sabe melhor do que ninguém. Você sabe que poesia, pintura, escultura, música, dança, teatro e cinema são básicas necessidades humanas. Viver sem arte é só meio viver. Somente a arte pode expressar o que não pode ser explicado pela ciência e pela matemática.

Assim também entende o jovem contestador. É pela arte que ele entra para o mundo adulto com olhos de criança. É pela arte que que ele cresce um pouco mais do que os outros e espia por sobre os ombros da história.

O jovem contestador é aquele que ainda se lembra das realidades que podia ver até os seis anos de idade. Lembra-se que lhe disseram que suas realidades eram ilusões.


Cérebro – Uma peneira

Um homem é cego e surdo para a arte quando lhe falta o vislumbre, o lampejo da criança que, lá dentro dele, vê e ouve e sente. Esse homem mantém a criança amordaçada nos porões do adestramento, desnutrida de todos os sonhos e de toda a rebeldia. Mas é ele quem vai morrer de desespero e inanição.

Aldous Huxley dizia que o cérebro é uma espécie de peneira e que alguns têm as malhas dessas peneiras muito fechadas. Em peneira fina só passam realidades pequenas e ideias medíocres. Mediocridades e pequenezas se alojam no fundo da mente ou vão cair sobre a criança amordaçada para afogá-la em preconceitos e ideias envelhecidas.

O jovem contestador, aquele que não se conforma às penumbras adultas, abre seus braços, solta sua voz, acende a lanterna das memórias infantis e deixa que as idéias grandes e as grandes realidades rasguem a peneira toda.

O jovem contestador liberta aquela criança tagarela, aquele serzinho atrevido que enfia o palito na engrenagem e alvoroça moralismos e acomodações.


Contracultura

Ao longo da história, jovens se unem em torno de ideais compartilhados para enfiar alguns palitos no motor.

Aqueles que ousam ter olhos para o que ninguém mais vê soltam seu grito de transformação. 
Assim nasceram os movimentos de contracultura. Assim nasceram os beatniks, nasceram os hippies e nasceram os punks.


"A civilização se tornou tão complicada
Que ficou frágil como um computador
Se uma criança descobrir
O calcanhar de Aquiles
Com um só palito para o motor"
(Raulzito)


A Geração Beat

A Geração Beat iniciou-se quando jovens intelectuais, escritores e artistas da década de 50 se rebelaram contra o consumismo, contra o fanatismo anticomunista, contra o otimismo patriota do pós-guerra americano e a ausência de pensamento crítico.

Nas palavras de Jack Kerouak, o escritor mais influente daquela geração:

"A Beat Generation  foi uma visão selvagem que eu, John Clellon Holmes e Allen Ginsberg tivemos de uma geração de loucos, iluminados descolados. Uma visão que fez subitamente a América ascender e avançar, seriamente a vadiar e a pedir carona por todo lado, esfarrapada, beatificada, bonita de uma nova forma. Graciosamente feia."

Os beatniks deixaram como herança a luta pela liberação feminina e pela liberdade sexual.

Anti-materialistas, interessavam-se por estados alterados da consciência e por conhecimentos místicos.

Pergunta Kerouak:
"Quem sabe, na verdade, se o Universo não é um vasto mar de compaixão, o verdadeiro mel sagrado, debaixo desta exibição de individualismo e crueldade?"


O Movimento Hippie

Na década de 60, os hippies criaram o movimento mais influente da contracultura.

Jovens se rebelaram contra os valores então estabelecidos, contra os pensamentos e comportamentos padrões, contra a ideia de ascensão social a qualquer preço, contra as incongruências e perversidades da sociedade capitalista.

Alucinógenos, arte psicodélica e amor livre coloriram aquela geração que erguia bandeiras de Paz e Amor.

"Picture yourself in a boat on a river,
with tangerine trees and marmalade skies
Somebody calls you, you answer quite slowly
– a girl with kaleidoscope eyes"
(Beatles)

(Imagine-se em um barco em um rio,
com pés de tangerina e céus de marmelada
Alguém te chama, você responde muito lentamente
- uma menina com olhos de caleidoscópio)



O Movimento Punk

Década de 70. Os punks, assim como os hippies, eram pacifistas, mas defendiam uma atitude social e visual mais agressiva. Desprezavam a sociedade estabelecida e queriam demonstrar esse desprezo.

Com suas roupas surradas, cabelos moicanos e jaquetas com taxas e rebites, negavam-se a calar diante do fascismo, do racismo, do sexismo, do conformismo, dos modismos e dos agentes do poder.

Na política defendiam a auto-gestão, sem um governo central, sem partidos e autoridades.

Grupos como Sex Pistols e The Clash serviram de inspiração para os punks e deram voz àquele repúdio que sentiam em relação à organização social e política mundial.

"What are the reasons?
Schools are prisons
Forget the seasons
Schools are prisons
What are the reasons
for this waste of the spring?"
(Sex Pistols)

(Quais são as razões?
Escolas são prisões
Esqueçam as estações
Escolas são prisões
Quais são as razões
para este desperdício da primavera?)


O Império Contra-ataca

É claro que a maioria dos jovens não participou dos movimentos de sua época.

Por alienação ou influência dos adultos, muitos viam aqueles contestadores como folclóricos, porra-loucas, vagabundos.

Grande parte daqueles jovens contestadores acabaram assimilados pelo sistema que combatiam. Cansaram de lutar, sentiram a ausência de mais soldados na trincheira e pularam para a linha inimiga – como aliados ou prisioneiros de guerra.

Tornaram-se zumbis. Vagam por um mundo estranho, cujas leis eles não entendem, mas têm de seguir. Adotaram valores alheios e o cotidiano se arrasta em um arremedo de vida.

Porque o Sistema há muito percebeu que a melhor estratégia contra os rebeldes é absorvê-los.

Um bom exemplo são os hackers e crackers.

Expressões da cultura cyberpunk, esses jovens são contratados por grandes corporações, deixam de representar ameaça e tornam-se cordeiros nas mandíbulas insaciáveis da máquina.

Em todos os movimentos de contracultura, a tônica é sempre a mesma. Uma minoria (mas uma minoria significativa) ergue bandeiras e ousa caminhar na direção contrária.

O poder, num momento inicial, usa ferramentas de opressão para combater aquela minoria. Depois a exibe em outdoors e capas de revista, faz com que seu modo de vestir vire fashion, cool, até que toda a juventude passe a usar o mesmo uniforme, até que todos voltem a ser iguais.



Manifestações no mundo atual

E hoje? Existirá alguma minoria que percebe a marcha da manada em direção ao precipício, existirá alguma minoria que se nega a ser levada a reboque?

Será que alguns rebeldes legítimos caminham em direção contrária?

Sim, sempre há aqueles que conseguem ver.  Manifestações ainda pipocam ao redor do mundo.

Malala Yousafzay, uma adolescente de 17 anos ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 2014 por sua luta em favor da educação de meninas do Paquistão.

(Malala divide o prêmio com indiano Kailash Satyarthi. Satyarthi, ativista dos direitos das crianças de seu país, é um jovem de 60 anos.)

Mas talvez o mundo tenha se tornado complexo demais para os jovens de hoje. Há informação demais e profundidade de menos. Leem-se  títulos e manchetes, e o texto virou secundário.

Hoje o adestramento se dá mais cedo. Já nas creches começam a lhes impor comportamentos e são ensinados a seguir padrões. Exigem que seja um profissional eficiente, que saiba engraxar engrenagens cegas e enlouquecidas, que encontre um espaço cômodo na única realidade possível.

Nas escolas tornam-se robozinhos de competição. Quando saem das pseudo-universidades, são imediatamente engolidos e levados às entranhas da máquina maior.

Mas, aleluia aleluia, alguns conseguem ver. Percebem que o inimigo hoje é difuso, já não basta combater governos e burgueses.

Agora, esses poucos jovens precisam se dividir em diferentes frentes, lutar em diferentes batalhas contra um inimigo sempre diferente - e sempre igual.

Outros nem vão às ruas, mas defendem suas idéias no próprio grupo social. Procuram seguir a consciência e não recuam diante da opinião contrária e da crítica conservadora.


  
E você, jovem?  Quem é você no jogo do bicho?

Você consegue antever o precipício ali na frente?

Você procura manter abertas as malhas da mente para que grandes ideias e as grandes verdades sejam bem vindas?

Para onde você caminha? Você segue em frente?

Você engole tudo o que a grande imprensa e os populistas de plantão oferecem?

Você não duvida das verdades absolutas de seu tempo?


Você não procura saber a quem aquelas verdades absolutas interessam?

Você assimila modismos e pensa que ser rebelde é exigir um par de tênis de mil pratas, um novo boné, o mais recente smartphone?

E mesmo assim acredita em homens que usam paletó e gravata, discursos surrados e conceitos caducos?

Será que é mesmo uma boa ideia deixar para esses velhos a tarefa de mudar o mundo?



Desengonços do mesmo naipe:

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Empacados


Naquele dia que a gente,
nesta estrada empacá
Vai entendê de repente
e vai pará de gritá
Só pode seguir em frente
quando ao outro escuitá

Uma boca, dois ovido,
dois ói pra enxergá
Um pé pode ter ido
o otro pode vortá
Se um dedo for perdido,
quatro pode ajudá

Tem um mião de cabelo
no topo dessa cabeça
Querendo você mantê-lo,
espero que não se esqueça
Domingo pra elegê-los,
Esquecê-los já na terça

Que DESESPERO é esse em 2014?


Folha Press
Que momento especial estamos vivendo!
É a primeira vez que participamos do roteiro de uma eleição. É a primeira vez que realmente podemos nos manifestar.
As redes sociais agora são fontes para a imprensa. Nós deixamos de ser apenas leitores, ouvintes ou telespectadores.
Na era da internet, nós somos múltiplos. Somos a notícia e o noticiado, o informante e o informado.
É um privilégio viver neste novo mundo sem fronteiras. Adeus, territórios. Adeus geografias.
Que momento especial estamos vivendo!

A ânsia por expressão mandou o voto secreto pro beleléu. Felizmente, digo eu. Porque assim, quando você revela suas inclinações políticas, você incentiva o exercício da tolerância.
E tolerância se aprende praticando - como votar.
Tolerância é ser capaz de entender que, sim, cada cabeça é uma sentença. Por mais que rime, por mais estranho que pareça.

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo, eu me desesperava

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português
                                                                 (Belchior)

peroratio.blogspot.com
Mas diga-me, Deus, que desespero é esse em 2014? Que gritaria é essa, sem sentido? É um tal de Aécio cheirador pra cá, é Dilma PresidANTA pra lá. É coxinha, é petralha, é Venezuela, Cuba, Miami, pobre Brasil.

Amigo, eleição não é futebol.

Eleição não é Corinthians e Palmeiras, não é Gre-Nal, nem Fla-Flu, nem Ba-Vi, nem Bra-Pel.

Estamos agindo como se o país fosse um estádio, e nós, os hooligans.

Defendemos cada partido com a mesma paixão com que torcemos para o nosso time. O nosso candidato é melhor que Messi, o nosso partido é campeão do mundo.

Será que xingar petistas de cegos e peessedebistas de coxinhas é a maneira mais efetiva de convencimento?

Sem falar na evidente falta de educação, usar um plural para xingar alguém demonstra puro e simples preconceito.

Pessoa é singular. Julgar o todo a partir do individual está na raiz da maioria dos preconceitos. Daí ouvirmos preciosidades como todo gremista é racista, todo são-paulino é veadotodo colorado é campeão (ops, tolere essa última).

Se você acredita em seu candidato, debata, mostre suas idéias, exponha os projetos do seu partido. Mas compreenda que esse sentimento de indignação que você sente é igualzinho ao que o outro sente. E isso, por si só - já os torna parceiros de sentimento.

No fundo você sabe que nenhum deles realmente o representa.
Mesmo assim, que grande chance de debater essa falta de representatividade!

Hoje, em dois segundos é possível falar com o Brasil inteiro. Vivemos um tempo em que é finalmente possível falar como povo.

Não somos porta-vozes de políticos. Eles é que deveriam ser nossos porta-vozes, eles é que deveriam estar brigando por nós.

No fim dessa briga nós é que saímos esfolados.

Então será que vale a pena toda essa gritaria por Dilmas, Aécios e Messis?

Que tal baixar as bandeiras, sentar nas arquibancadas e, civilizados como somos, bater um papo?

Que momento especial estamos perdendo.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A mais estranha de todas as experiências

(Correndo o risco de perder a credibilidade, devo declarar que a experiência aqui relatada foi a única dessa natureza e deu-se exatamente como aqui se encontra.)

Continuação do post Passamos bem esse verão

“We’re going where the air is free
Tomorrow belongs to me
When you’re sad and feeling blue
Don’t just sit there feeling stressed
Take a trip on the National Express” (*)

(*) Trecho da música National Express do grupo Divine Comedy que a gravou para demonstrar, com sarcasmo, o que a National Express - a mais tradicional companhia de viação terrestre da Inglaterra - significa para os ingleses.

Londres fica para trás. No caminho que nos leva a Leeds, espera-me a mais estranha experiência, não desse dia, não dessa viagem, não desse período na Europa; no caminho que nos leva a Leeds, espera-me a mais estranha experiência de minha vida.
           
Paisagem inglesa através da janela, eu e Adriana tentamos relaxar no ônibus da National Express. Fazemos comentários triviais a respeito das peculiaridades do cenário, dos campos de ovelhas, das construções e das pequenas cidades cujos nomes não sabemos pronunciar.

(Um dia ficaremos atônitos ao sermos informados de que Knaresborough, uma bonita cidadezinha próxima a Leeds, é pronunciada mais ou menos Nesbra. Assim como acontece com tantas outras palavras inglesas, especialmente no que se refere a cidades, a grafia de Knaresborough foi sendo alterada no decorrer dos séculos. A cidade já foi escrita em aproximadamente trinta formas diferentes, começando com Chenaresburgh, passando por Cnarreb e Cnareburc, por exemplo, até chegar a simplificada grafia atual).

Entre um e outro ingênuo comentário, cansados pela viagem e principalmente pelo stress decorrente do sufoco na imigração, permitimo-nos longos hiatos de silêncio.

O Brasil é uma distância, assim como nossos antigos hábitos, os ambientes conhecidos, os amigos, a família. Não sabemos quanto tempo ficaremos na Inglaterra e não temos ideia do que nos espera.

Eu entreguei o apartamento em São Paulo e vendi o carro. Pela primeira vez na vida eu não tenho uma chave no bolso. Esse sentimento, esse estar no meio da estrada sem um lugar para voltar pesa no estômago.

Uma pergunta insistente nos acompanha: estaremos fazendo uma grande bobagem?

O ônibus para em pequenas rodoviárias ao longo da estrada. O motorista, depois de anunciar que a parada é apenas para embarque e desembarque, sai, acende um cigarro e - para desespero dos fumantes a bordo - fuma com sádico prazer.

É numa dessas pequenas rodoviárias que o fato acontece.

Eu e Adriana acabamos de trocar lugares. Agora ela senta-se junto ao corredor e eu estou à janela.

O ônibus para uma vez mais, o motorista fuma, alguns passageiros descem, outros sobem. Nos apenas observamos em silêncio.

Este é um pequeno complexo composto de lojas, lanchonetes e a rodoviária propriamente dita. Uma longa cobertura protege a fachada dos estabelecimentos e, após desenvolver um L, une essa construção à outra, ao fundo, onde se pode ver dois ônibus estacionados.

O lugar é quieto, a atmosfera é de desolação.

Lá, junto ao primeiro dos pilares que sustentam a cobertura, avisto alguém. Alto e magro, vem a passos rápidos sobre o piso de granito. Traz uma grande mochila nas costas e mantém ambas as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans.

Sinto um tremor de reconhecimento e Adriana inclina-se para observar.

A cada quatro passos o sujeito desaparece por detrás de um pilar e volta a aparecer.

Suas características gradualmente tornam-se mais nítidas. Os cabelos lisos e claros, ligeiramente longos atrás, começam a rarear na parte frontal. A testa é ampla, o nariz tem consideráveis proporções, a boca é grande, os lábios, grossos.

Mesmo sob o peso da mochila, ele faz um esforço para não se curvar. Anda de ombros encolhidos como costumam fazer aqueles que, ao manter as mãos nos bolsos, conservam os braços esticados.

Olha sempre em frente, mas quando para perto de nossa janela, exatamente sob o vértice do L da cobertura, parece um pouco perdido.

Adriana segura minha mão. Permanecemos mudos. Minha boca esta seca, sinto o suor verter rapidamente dos poros e escuto meu coração aos saltos. 

Ele está muito perto para ser confundido. Cansados sim, mas muito distantes do estágio da alucinação.

Assistimos quando ele checa alguma coisa no bilhete de passagem que retira do bolso de trás.

Parece em dúvida. Olha para o relógio várias vezes, está preocupado.

No início, quando ele surgiu lá no primeiro pilar, a sensação era apenas de familiaridade.

Depois, ao vê-lo caminhar apressado, o cabelo subindo e descendo no ritmo dos passos, uma onda gelada cresceu no estômago e desenvolveu um caminho lento em direção à garganta.

Agora que ele está bem ali, a três metros de distância, tenho a certeza que não vou mais respirar.

Adriana consegue falar, baixinho, como que temendo que ele pudesse nos escutar:

- Isso é impossível, Zé.

A mão dela aperta a minha. Desvio o olhar, fecho os olhos. Rezo para que, quando eu voltar a cabeça e olhar novamente, ele não esteja mais lá.

Mas está.

Parado.

Olha mais uma vez para o relógio.

Divide comigo um desconforto.


Sentado num banco do ônibus da National Express, na rodoviária de uma cidade inglesa da qual eu não sei o nome, eu sinto as duas mãos de Adriana apertarem a minha, eu o vejo pela janela.

Ele continua lá, conferindo a hora. Eu continuo aqui, no banco, imóvel, junto à janela.

Não há duvida.

Você já pode balançar a cabeça. Exerça sem culpas o direito ao ceticismo.

Se você está pensando: “ele não esta querendo dizer que...”

Estou sim:

O estranho lá fora sou eu.

Ele – e agora é muito difícil chamá-lo assim – pergunta algo ao motorista, que continua fumando.

O motorista responde, gesticula, mas não parece ter muita certeza do que diz. Desfaz-se do cigarro, olha mais uma vez para o sujeito parado lá fora e entra no ônibus.

Eu confesso que nem vejo a cena seguinte e somente saberei deste detalhe mais tarde, pelos lábios de Adriana. O motorista, ao entrar no ônibus, caminha pelo corredor como se procurasse alguém e para a nossa frente. Examina-me com curiosidade. Ele dá mais uma olhada para aquele parado lá fora, coça a cabeça, dá de ombros e encaminha-se a seu lugar, pronto para continuar viagem.

O motorista liga o motor e o ônibus começa a se movimentar.

Lá fora, ele, eu, o cara, sai apressado e toma a outra perna do L sob a cobertura. Adriana ergue-se num salto.

- Temos que descobrir o que é isso, Zé.

Que ninguém me pergunte porque a impeço. Talvez eu não queira descobrir o que é isso, talvez eu tema perdê-la para ele, para mim, e testemunhar o desaparecimento de Adriana, de mãos dadas comigo mesmo, nesta cidade estranha da Inglaterra.

Olho mais uma vez através da janela e o vejo, vejo-me, afastando-se-me, rapidamente. É a ultima imagem que guardo de mim.

Adriana ainda está em pé no corredor e eu percebo que estou esmagando o braço dela para impedi-la de parar o ônibus e correr atrás de mim lá fora.

O ônibus deixa a rodoviária e começa a ganhar velocidade. Então sou eu que decido me mover.

Penso que aquilo não pode ficar assim, que um acontecimento como esse deve ser investigado, que é preciso ficar frente a frente com aquele espelho e descobrir o que sai de lá.

Eu salto do banco para o corredor e corro em direção à frente do ônibus. Do outro lado do vidro que o separa dos passageiros, o motorista me encara assustado. Minha expressão deve realmente ser aterradora.

- Are you ok? – ouço sua voz surpresa e preocupada através dos orifícios do vidro divisório.

Permaneço estático, com ambas as mãos espalmadas contra a superfície de vidro. O motorista alterna o olhar varias vezes entre mim e a estrada.

- Are you ok?

Yes, I’m ok, obrigado; estou bem, thanks.

Volto para o meu lugar, devagar.

Mesmo que eu falasse inglês fluentemente o que poderia eu dizer ao motorista? Eu gastaria todo o meu vocabulário e não creio que conseguiria fazê-lo a voltar. Como convencê-lo com o argumento de que eu havia sido esquecido na rodoviária?

Mais de uma hora se passa até voltarmos a conversar. Eu não conheço a paisagem, mas algo me diz que tudo se transformou, que a árvore que eu vejo já não é a mesma que ontem podia ser vista.

Torna-se impossível evitar a enxurrada de questionamentos. Quem era aquele, o que era, o que fazia?

Eu posso desde já rejeitar qualquer hipótese relacionada a questões de sangue. A possibilidade de ter um irmão gêmeo na Europa devido a algum tipo de cisão familiar deve ser descartada – quem conhece os Volcans e sua história sabe que isso seria improvável, se não impossível.

Procuro convencer-me da existência de um sósia perfeito, mas não me parece plausível aceitar que mesmo um sósia perfeito possa ser tão perfeito.

Minha cabeça está em brasas e as idéias saltitam de lá pra cá para não queimarem os pés. A teoria dos duplos é a que mais se empenha em resistir, a que mais insiste em me enlouquecer.

Por fim, permito que a idéia venha à tona, admito que há um duplo, alguém idêntico a mim, o famigerado outro, vivendo uma outra vida em outra parte do mundo.

Começo a presumir que aquele cara, o outro, deve estar seguindo alguma lei natural que o obriga a viajar para o Brasil porque não pode se deparar comigo, o duplo dele, num mesmo espaço físico.

Ele está iniciando a viagem naquela rodoviária porque é preciso preencher o lugar vazio que deixei junto à minha família e amigos. Ele vai  tomar posse da minha vida, da qual provisoriamente eu me afastei. 

Temo pelos meus pequenos segredos guardados dentro de um livro ou de uma caixa de sapatos. Temo pelas minhas senhas e cheques. Eu sinto um dolorido ciúme do abraço de minha mãe.

Mas é preciso parar com isso, jogar um balde de água fria nas brasas da mente, sossegar estas idéias todas. Por dois segundos.

E se o ônibus da National Express foi colocado aqui para me manter numa espécie de limbo entre dois mundos, entre duas dimensões? E se esta viagem não acabasse nunca?

O ritmo das perguntas acelera-se. Adriana tenta mudar de assunto e eu insisto.

O que teria acontecido se eu tivesse descido do ônibus?

Como teríamos nos sentido frente a frente?

Na improvável hipótese de ele falar português, o que teríamos conversado?

Teríamos nos abraçado, teríamos criticado a forma do outro se vestir (o estilo era exatamente o mesmo, na verdade), teríamos tentado provar que o outro era uma farsa?

Serei eu uma farsa?
           
Felizmente o ônibus já entra na cidade de Leeds. Devagar eu vou arrancando os pensamentos a fórceps e começo a afogá-los metodicamente, um a um, na garrafa de água mineral.

É preciso voltar ao mundo dos normais. É preciso voltar a ser eu mesmo. Mas terei sido eu, algum dia, eu mesmo?