sábado, 12 de outubro de 2013

Vamos conversar sobre Deus?


Esta vai ser fácil de escrever. A tarefa é simples: explicar o Inexplicável, sondar o Insondável. Mas é preciso começar.

Comecemos. Para alguns hindus, o Universo é Deus pensando. Nossos irmãos do Oriente não dizem que o Universo é o pensamento de Deus. Porque, para eles, Deus não é estado. É ação.

Como pode ser substantivo Aquele que no princípio era o Verbo?

- Mas que porra de verbo é esse que todo mundo fala?

E não está ali, cara pálida, às margens do Nilo? Deus não pode ser entendido como algo estático. Ok, Deus não pode ser entendido, mas é possível assimilá-lo um pouco. Deus, movimento e expansão. Nós, homens, cachorros e unhas, crescemos todos juntos com Ele.

- Ah, você está facilitando as coisas...

Dizem que...

- Quem diz?

Eles. Os cientistas. Com bastante parcimônia dá para usar alguns daqueles conceitos. Pois não é que eles criaram a imagem de um Universo Virtual? 

Na reprodução, em uma infinita malha, galáxias interagem por intermédio de longos feixes esbranquiçados. Esses feixes cruzam toda a matéria escura que mantém as galáxias unidas.
A matéria que você conhece, que está acostumado a tocar (sua escrivaninha, sua vizinha, seu livro de cabeceira) representa  apenas um sexto do Universo. O resto é matéria escura, mas que ninguém – nem eles – tem a mínima ideia do que seja.

- Só você, né?

Saber, eu não sei, mas tenho uma proposta a fazer.

- Aí vem.

Terei primeiro que me desculpar por citar o verme de Spinoza.

- O espaço é seu. Escreva o que lhe der na telha.

Spinoza dizia que um verme habitando nossas veias não veria o sangue. O verme é cego? Não. O verme seria cego se pudesse ver o sangue, porque assim não veria nada além disso, nem glóbulos brancos, nem vermelhos, nem plaquetas. O mundo do verme seria apenas a imensidão vermelha.

Se nós, vermes do Universo, pudéssemos ver a matéria escura, seríamos cegos para todo o resto, uma vez que ela nada mais é do que aquilo que normalmente chamamos de espaço. É esse espaço que circunda e une toda a matéria tátil, as galáxias, as formigas, nós dois, a Lady Gaga.

- Aí você já está exagerando.

Você ainda não viu nada.  Imagine o Universo como uma esponja. Uma esponja daquelas de banho, com espaços vazios, só que com mais e maiores espaços vazios.
O espaço vazio da esponja representa a matéria escura, a parte que não podemos ver, mas que está ali, é imprescindível para que a esponja seja uma esponja e você possa esfregar o pescoço.
A parte visível da esponja, toda interligada por filamentos sintéticos, representa as galáxias e suas conexões.

- Até aqui, eu cheguei.

Então, eis minha proposta. Tudo isso que até agora nós chamamos de esponja...

- Que você chamou de esponja.

Essa esponja infinita que se expande, esse conceito quase compreensível, é o próprio cérebro de Deus, Sua massa cinzenta. O Verbo, que se faz visível.

- ...

Se o cérebro de Deus é composto de matéria escura, as Galáxias são Seus neurônios, e todos aqueles feixes esbranquiçados pelos quais se comunicam, as Sinapses Divinas. Em constante interação, algumas galáxia se chocam para se fundir em uma só, outras se afastam, outras nascem, o Todo cresce.

- E nós? Onde que nós ficamos nisso tudo?

Você acha mesmo que nós temos alguma importância? Qual sua idade?

- Cinquenta.

Parece menos, mas o que representam cinquenta anos, o que representam quinhentos, cinco mil, um milhão de anos? Menos do que um piscar de olhos para o Universo que tem doze bilhões.

- Assim você me deprime.

Pode-se piorar um pouco. Se, no tempo, somos miseravelmente insignificantes, imagine no espaço infinito que se expande?

- Tem uma corda aí?

Mas não é aí que está o bom da coisa toda? Nossas insignificâncias unidas pela matéria escura dos pensares de Deus, desde sempre, para todo o sempre, não como eterno retorno, mas como eterna expansão divina.

- E que vantagem eu levo nessa?

Nenhuma, se você pensar em Deus como meio, embora seja assim que costumamos pensar.  Deus, um meio para atingir meus objetivos, para ser feliz, para ganhar na mega-sena.

Deus não pode ser meio, mas objetivo, alvo, final. Não peça a Ele a satisfação de suas vontades, Deus não existe para servi-lo. Se dependermos das ações de Deus para acreditar n’Ele, o melhor a fazer, desde já, é nos assumirmos ateus.

Se aceitarmos Deus como objetivo, então nossas próprias ações nos levarão a Ele. Bastará dançar no ritmo do Universo, nesta dança cósmica, nos embalos da Onisciência.

Se Deus é expansão e nós nos mantivermos estagnados, abraçados nesta matéria visível, estaremos remando contra a maré.  Mas se usarmos nossa capacidade de integração, não apenas uns com os outros, mas com tudo o mais que existe, visível ou não, estaremos aptos a entrar na sintonia dos pensamentos d’Ele.

O segredo está em percorrer as espirais dessas nebulosas. Cedo ou tarde encontraremos aquele perdido caminho das almas. Assim o homem, minúscula partícula de Deus, deixará sua insignificância para se sentir grande como as galáxias, divino como as estrelas, matéria do Pensamento Maior, aliado da Vontade.

- Bonito isso, né? Será que seguindo esse caminho de almas e nebulosas que une o Faustão, as formigas e a humanidade, eu vou encontrar a Lady Gaga? 

Sim, É inevitável.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Além dos Muros da Prisão


"Vejo pouca diferença entre o mundo interno das prisões e o mundo exterior. Um milhão de muros não podem nos proteger, porque os perigos reais - o militarismo, a cobiça, a desigualdade econômica, o fascismo, a brutalidade policial - são encontrados fora, não dentro, dos muros da prisão."

Philip Berrigan

A Quem Pertence Isso Tudo?

Foto - Blog do Sereno

"O primeiro homem que, depois de ter fechado um pedaço de terra, pensou em dizer 'Isso é meu' e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.

Quantos crimes, guerras, assassinatos, quanta miséria e horror a raça humana teria poupado se alguém tivesse arrancado as estacas e preenchido o buraco para gritar aos seus companheiros: 'Acautelai-vos de escutar esse impostor. Você estará perdido se esquecer que os frutos da Terra pertencem a todos e que a própria Terra não pertence a ninguém!'"

Jean-Jacques Rousseau

Geringonças Visíveis


O visível é o meio
que o invisível usa
que a inconsciência busca
para se
manifestar

Agora querem nos convencer de que somos apenas máquinas biológicas. Não mais do que um amontoado de moléculas e estupidez.

Na voz dos cientistas (e outros desatentos), este corpo do qual sou habitante é meu hardware.  Afirmam que, para comandar o humor deste emaranhado de carne, osso e nervos, dependemos da matemática dos elementos químicos.

Segundo aqueles sujeitos, se meu cérebro (disco rígido desta geringonça visível) estiver faminto por serotonina, não realizará suas sinapses de acordo com o programado. Ele me dirá para me esconder sob quatro cobertores, e só sair em caso de novo dilúvio.

Mas quando o hard disk for saciado, ele me fará pular todos os carnavais de Recife e Salvador. Na Quarta Feira de Cinzas me levará para Ibiza, na quinta para o hospital.

Esses materialistas de microscópio proclamam a verdade naquilo que podem ver, pensam que está no visível a causa da angústia, da alegria, do medo, do barulho no motor.

Mas, se entrarmos em guerra contra os cientistas levando lógica e matemática como armamento, a derrota tende a ser vergonhosa.

Como então convencê-los que é no visível que o invisível pode ter nariz, bocas, orelhas de abano, e outras coisas de sentir e aprender?

Não com prosa, por certo. Que tal com cantigas?

(Dica aos cientistas: quanto mais rápido conseguir ler, mais rápido vai compreender.)

O Carpinteiro Hipotético
Que do corpo quis apetrecho
Pra esculpir no quê se vê,
Pra esculpir no quê se vê
Já vai fazer entender
Que entender o invisível
Somente será possível
Se você desentender

A cantilena da alma,
Que pra depressa aprender recita
Pra esculpir no quê se vê,
Pra esculpir no quê se vê
Vai te trazer a calma
Porque esta chama, maldita,
Talha, estala, crepita
Bem dita te faz arder
Pra esculpir no quê se vê,
Pra esculpir no quê se vê

Se aos esses dessas espinhas
Não sucedem desassossegos
É só sentir sonhar sorver
É só sentir sonhar sorver
Só aceite o Ser sensível
Sutililizar o visível,
Seu cientista sem saber
É só sentir sonhar sorver
É só sentir sonhar sorver



quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Andantes




Se é você quem rasura
Palavras de corpo inteiro
Se é você quem procura
Cigarras no formigueiro
Venha ser escudeiro
De um homem e uma ternura
Ou seja de vez cavaleiro
Aquele, da triste figura

O Passado em Sombras



Seguindo os destinos da sombra
nestas ruas sem saída, 
passado e homem se encontram
para refazer a vida 
 A alma, de malas prontas,
tem por nome Urgência:
“Se já acertaram as contas,
que tal tomar providências?”

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Valentim se despede de Deus

Picture by Richard Baxter

O lampião de gás estilhaça a janela.


O lúmen da desesperança fulgura na noite e expulsa os santos imaginários de Valentim.

Lampião.

Um palmo de amebas.

Em chamas.


Na grama.

No duro chão.

Valentim nem diz amém. Ergue-se e esfrega, esfrega, esfrega os joelhos. Grama rala. Pouca chuva nestas primeiras noites de verão.

Culpa de São Pedro?

Dos santos?

Que São.

Que sejam.


Essa foi a última vez de joelhos.

E de coceira.

Amém.

Que sejam assim.

Todos Vocês.



As pequenas mãos, antes crispadas no derradeiro fervor, entregam-se à inércia do entorpecimento.

Os gritos dos adultos, lá dentro da casa, cessaram.

Valentim mergulha no lago fundo de seu coração menino. Desimportante. É tão imenso o mundo.

Animais noturnos, seus sibilares e grunhidos, e coaxares, e aqueles sons deles mesmos.

Pior é o silêncio da mata. Valentim olha para o céu. Por entre os galhos da figueira centenária, estrelas acenam - são crianças, e querem nascer.

Nascer para quê?

Formigamentos na fronte – quanto tempo a fronte amparada pelo áspero do caule?

O vulto do irmão mais velho aparece na janela. Emoldurado pelos caixilhos, sem a vidraça que ele mesmo quebrara, o irmão assiste a ultima insignificância de luz, os restos do lampião que se findam no pátio de terra dura.

Valentim vê o irmão dar as costas à janela e reaparecer no estreito caminho de pedra na lateral da casa.

Uma fresta se abre no coração de Valentim. Por ali uma esperança débil ameaça se infiltrar. Nem todos ignoram a criança que havia se ajoelhado pela última vez.

O irmão vem, abaixa-se sobre os restos do lampião. Com cautela e dois gravetos, ergue o ainda ardente receptáculo de gás. O rosto duro acende-se por dois segundos.

No peito de Valentim, um ínfimo de calor familiar, a promessa de adulta proteção.


Braços como apêndices frouxos ao longo do corpo, Valentim espera.

O irmão larga gravetos e lampião. Ergue-se. Encara Valentim.

Então, num desprezo de movimentos, chuta o que restava da coisa incandescente. Uma risca de chamas crepita num átimo e definha, sem suspiro, lá junto à cerca de bambus.

Valentim vê o irmão mais velho voltar pelo caminho de pedra, vê o irmão desaparecer entre os umbrais da velha porta de madeira.

Em seguida vê a mãe perguntar, irônica e amarga:

- Pensou que dava pra consertar?

- Nada mais tem conserto – responde o irmão.

O mundo de Valentim volta a se reduzir a trevas íntimas. O
 último esguio lapso da esperança serpenteia entre entidades e cacos. As preces morrem nas sombras e os deuses definham um a um. Como o lampião, junto à cerca.

Sem deuses e lampiões, anoitece de vez nos estábulos vazios, anoitece nos mortos arrozais, também no córrego de águas serenas, também no caminho de pitangas, até no buraco do estômago.

E anoitece de vez no que restava das súplicas.

Nenhum mistério, ninguém mais a quem recorrer.

Gente e seus tantos santos para um único Deus.

E Deus não existe.

No negrume, Valentim. No negrume, Valentim, desilusão e alívio.

Ali, no lugar antes pertencente a Javé, a noite se fendeu. Para abrigar as contas de um rosário, os reinos do Pai Nosso, as graças da Virgem e a proteção dos anjos, enfia-se tudo ali, naquela fenda propícia da escuridão.

Na banda mais anoitecida daquelas trevas, exorciza-se o peso da esperança, rasgam-se evangelhos, quebram-se crucifixos e promessas.

Ali, na clareira sob a figueira, morrem aqueles enganos todos clamados por Valentim desde que o ensinaram a rezar.

Nunca mais missas de domingo, nunca mais proteções adultas, nunca mais medos compartilhados.

Porque agora, só no pequeno mundo, ele se bastará.

É só aguentar no osso do peito. Pernas embaixo, no alto uma cabeça - o bastante para caminhar.

Seis anos de idade, olhos lavados e livres, Valentim escolhe a solidão.




Um pouco mais sobre Deus:





domingo, 6 de outubro de 2013

Pequena Tragédia Punk


Terceiro científico,
Prova de OSPB
Eu tirei um cinco
E dediquei a você

O namorado de gravata
E sapato de verniz
Me agradeceu com classe
E um soco no nariz

Cresce cabelo moicano
Menina agora é mulher
Lá se vão mais de dez anos
E você me ainda quer

A história se repete
Mas agora ninguém vê
O marido com as flores
Eu na orquídea do buquê

O início do princípio
Intróito da introdução
Eu só senti o tiro
E aquele gosto de chão

Rua Estampido Seco
Bairro Praça da Sé
No escuro deste beco,
Jaz aqui mais um José

Em madeira de carvalho,
Revestida de veludo,
Descanso em meu armário
De coturno, chifre e tudo

Não tenho prece nem vela
Nem pranto de puxa-saco
Tenho é trinta amigos punks
Pra cuspir neste buraco

Entre caras de enfado
E fotos de Polaroid
Eis-me aqui emoldurado
Só curtindo meu I-pod


Homem Pássaro

- Homem é rascunho de pássaro – disse Manoel
 - Não terminaram de inventar.
Sendo ele o poeta
E sendo eu o vulgar
Pensei que estava certa
Aquela forma de pensar

O tempo passa, a gente muda
Aterrissa em outro lar
Se de Boeing, cogumelo,
Prosa de Carpinejar,
O vôo se ilustra em lótus
Nos céus de assim meditar

Ah, esses tolos se soubessem
Que o segredo é respirar,
Não fariam preces
Pro que está em outro lugar
Tadinhos daqueles pássaros,
Tantas asas pra voar!

Cotidianamente

É um jeito extravagante de fazer poesia
Abrir as páginas da rotina
Escrever o dia a dia

sábado, 5 de outubro de 2013

Que nada... É só o jeitinho dele.


(Releitura-da-obra-abaporu-de-tarsila
http://tribarte.blogspot.com.br)

"Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi or not tupi - that is the question."
Manifesto Antropofágico - Oswald de Andrade


Oswald havia nascido canibal e não podia confrontar a natureza. Devorar os pares é comum entre outras espécies (vide aracnídeos e gafanhotos), por que seria menos aceitável no homem?

Evitavam chamá-lo canibal. Na verdade, evitavam chamá-lo. Quando se referiam a Oswald, usavam o politicamente correto pessoa adepta de relação alimentar alternativa (daí a sigla PARAA – depois se acrescentou um “S” para simpatizantes).


Oswald preferia ser chamado de Oswald mesmo.

Numa semana lírica de 22, uma comissão formada por moradores dos bairros vizinhos dirigiu-se a Brasília com um abaixo-assinado.


Moralistas de carteirinha do movimento Tradição, Família, Propriedade e Porrada, seguidos por vegetarianos, pediam que canibalismo passasse a ser considerado crime.

Mas, o Jardim Andrade, lugar de nascimento de Oswald, não se calaria. Preconceito era uma coisa. Mas criminalizar o hábito ancestral significaria um golpe contra a cultura alimentícia primitiva.

No dia da votação, liderados por um tal Cavalcanti (também conhecido por Di), portando crânios, tíbias, destrinchadores e caldeirões de cozimento lento, o movimento canibalista marchou sobre o congresso.

Bandeiras com ossos cruzados de um lado, gritinhos de pavor do outro, as manifestações rivais invadiram as ruas da capital.

A tensão era permanente. A votação no parlamento seguia apertada.


Até que Macunaíma, porta-voz do Jardim Andrade, invadiu o plenário e leu o Manifesto Antropofágico.

Foi uma comoção generalizada. Nas galerias, apoiadores de Oswald entoavam suas palavras de ordem:

- Contra pensamentos enlatados!

- Contra as elites vegetais!

 A câmara acabou por reprovar a lei. O saudável hábito do canibalismo continuará a ser praticado livremente.

Para comemorar o sucesso, Oswald convidou o presidente da câmara para jantar.

O presidente entrou no número 22 da Rua Abaporu às oito da noite de terça-feira.


Até hoje não saiu.


"Eu vejo Flores em Você"

photo by Kate Powell
A cabeça se enche de flores, e os pés, de espinhos?
Ora, vá colher corações!
Caminhar dói um pouquinho,
 mas o perfume compensa.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Eu Nunca Fui à Lua

Não me envergonho em admitir. Eu não fui à lua. Nunca iria, jamais irei.
Em 69 (não-recíproco), alguém cravou a conquista americana na virgem paisagem lunar.
Por que não enfiaram aquela bandeira no cool do Kennedy?
Hoje todos visitam a lua. Tem shopping, tem restaurante, tem carro para alugar...
- Tem São Jorge? Tem dragão?
- Tem. Mas só dá pra ver daqui, do meu telhado.

Terra, Gaya mirante, 
feita para contemplar a lua,
coadjuvante.


- Vem, benzinho, vem ver a lua pra mim.

A Defunta Correa



Quem viaja pelas estradas da Patagônia Argentina, antes de se deslumbrar com geleiras e lagos gelados, testemunhará a monotonia dos pampas ser corrompida pelas cores de garrafas pet. Dispostas em longas fileiras, as garrafas se acumulam a alguns metros da rodovia.

Ao diminuir a velocidade - ou parar, o que é mais frequente-, o viajante vai se deparar com um pequeno santuário.





São dezenas – quem sabe centenas – de santuários, uns rudimentares, outros mais elaborados, todos construídos por devotos da Defunta Correa.

Mas o que fez essa santa mulher?

Maria Antonia Deolinda Correa - quando ainda nem era defunta - foi esposa de um soldado argentino. Assim que o primeiro filho nasceu, o marido foi recrutado para a guerra civil.

Correa ficou a ver navios no deserto, mas não desistiria daquele homem. Seguiu a pé os veículos do exército que cruzavam os milhares de quilômetros daquela imensidão. Levava nos braços o filho recém-nascido.

Depois de dias de caminhada, Correa, com o fim da provisão de água, morreu de sede.

Quando a encontraram, o bebê ainda vivia. Segundo os hermanos devotos, dos seios maternos ainda brotava leite – e a criança era amamentada pela mãe morta.

O bebê foi adotado. Um santuário foi construído no lugar onde Correa - agora sim defunta - havia sido encontrada.



Padroeira dos caminhoneiros, passou-se a atribuir a ela uma série de milagres e os santuários proliferaram à beira das estradas. Neles, os devotos – ou viajantes em geral – deixam garrafas de água para que Correa não sinta sede agora que é defunta.

O local onde foi encontrada com o filho tornou-se hoje um grande complexo turístico com hotéis, campings e restaurantes. Em cada esquina, a Defunta é vendida em souvenires e camisetas.

Perguntei para um peregrino se ele realmente acreditava que ela realizava milagres.

- Si – respondeu o homem –, ella es muy milagrosa, muy milagrosa.

Por via das dúvidas, deixei dois litros de água para a Defunta e parti para me deslumbrar com geleiras.





quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Desengonços de Maresias



Dez horas da noite numa desértica Maresias. Lá vem o sujeito de bicicleta:
- Boa noite, você tem 25 centavos pra me dar?
- Cara, saí só pra ver o mar que é de graça. Não tenho um centavo.
Ele monta na bike e ainda pedala uma indignação:
- Um homem que não tem 25 centavos no bolso nem homem é.

O Homem que Negocia Tristezas


Na fachada da pequena loja espremida entre um taxidermista e um mercado vodu, a placa de madeira anuncia o ramo do estabelecimento: Negociam-se Tristezas

Em frente à loja, todos os dias uma fila se forma. Quatro ou cinco pessoas, cada um com seu silêncio, aguardam a porta de ferro se abrir.

Alguns sofrem idas e vindas na calçada oposta, o canto do olho atento, a hesitação em cada passo. São os que carregam dores tímidas e angústias caladas. Serão muitas idas antes de voltar.

Quando a porta se abre, um homenzinho sai e avalia a fila. Depois se posiciona atrás do balcão de concreto. Com uma xícara de chá fumegante entre as mãos, chama o primeiro a ser atendido.


Adianta-se um menino.

Meninos como esse, que matam passarinho, são muito comuns por ali.

- Eu não sabia, entende? Eu puxei o estilingue e soltei. Quando eu vi, o bichinho tava morto, bem mortinho. Eu só queria acertar o alvo, não matar.

- Você não sabia que pedrada mata?

- Eu não sabia que morrer era assim.

O homenzinho medita por dez segundos. Dá uma golada no chá, dirige-se ao armário de tristezas às suas costas e volta com uma oferta.

- Tem aqui esta tristeza de um menino da sua idade que sofre de solidão. O melhor amigo dele foi morar em outro bairro.

- Faz tempo?

- Umas duas semanas.

- Já dá pra segurar.

O menino volta para casa sem remorsos, mas com saudade de alguém que não conheceu.


Qualquer tristeza pode ser útil a alguém. Corações quebrados o homenzinho troca por falências, perda de emprego por dieta restrita, desgosto de filho por decepção com os pais.

Não são poucos os que voltam alguns dias depois.

- A tristeza do outro parecia tão pequena no balcão. Cresceu na horinha em que eu saí da loja.

Nas tristezas grandes, nas dores sem bálsamo, o homenzinho manda o cliente esperar numa cadeira de três pés junto à parede. Depois, demais clientes atendidos e tristezas trocadas, ele fecha a porta de ferro.

Antes de desaparecer por detrás do armário de tristezas, ele diz ao cliente da dor maior:

- Pode vir.

Quando o cliente o segue, a porta para os fundos já está aberta.

No centro do estreito e longo quintal, sob a copa de uma pitangueira, sentado em um banco rústico de madeira, alguém o espera.

O cliente caminha dez passos lentos.

Reconhece um sorriso.

Uma idade de antigamente.

Aquele medo de que a imagem esvaeça.

A respiração suspensa.

Depois o abraço em quem não pode mais ser abraçado.

Não há pressa nem tempo. O homenzinho volta para a loja e espera em frente à xícara de chá. Está seguro. Nenhum fiscal aparecerá numa hora assim.

Do quintal vêm suspiros, risos, soluços.

Nas prateleiras algumas tristezas fenecem.

Ali, nos fundos da loja ordinária, por detrás de um estabelecimento de fachada, sem CNPJ ou inspeção dos bombeiros, sem qualquer permissão legal, sem higiene, sem nada, comete-se o mais terrível de todos os crimes.

Sob as barbas da sociedade, fingindo negociar sentimentos, um homenzinho mata saudades.


Eu também posso falar do Neymar

Neymar
foto by José Roberto Aguilar
Quando um cara é muito bom em alguma coisa, ele começa a se exibir e deixa de ser bom.”
(Fala do personagem de J.D. Salinger, Holden Caulfield, em O Apanhador no Campo de Centeio.)

Uma vez que devemos à vaidade dos artistas o acesso a grandes obras de arte, o exibicionismo não pode ser censurado sem critérios. Se pintores deixassem suas telas abandonadas em porões, não teríamos muito que fazer no Museu do Louvre. Eles morreriam de fome, mas nos perderíamos um pouco mais.
Houvesse Salinger mantido para si o seu “Apanhador...”, eu não teria reproduzido a frase ali em cima (eu sei, isso não mudaria o destino da humanidade).

O limite da exibição é que é o dilema do artista.
O dilema do pintor é conter o anseio de melhorar o perfeito. “Quem sabe uma cerquinha, só pra finalizar?” Mas a cerquinha acaba ocultando o boi, é preciso reposicionar o boi e agora o boi parece caminhar sobre a cerquinha. “Não vou nem assinar essa merda”.
Enquanto o pintor leva suas cercas e bois para o porão, o escritor sangra ao cortar gorduras e morre um pouco ao cortar da própria carne. A poesia da página 30, meu Deus, no meio da prosa ela não combina. Precisa sair. E o mundo vai ter que se virar sem aquele discurso revolucionário do capítulo 6.
Se a busca do pintor é por contenção de impulsos, a busca do escritor é a busca pela síntese, a obsessão em dizer o máximo com menos.

Alguns pintores, talvez para fugir de excessos e daquela ânsia pela última pincelada, preferem nem dar a primeira. Mantêm a tela branca. O supra-sumo do minimalismo. Nem um pontinho ali. Nada. O resumo da ausência. 
E não é que a tela branca virou moda?
Passaram a ser tão bem freqüentadas as galerias de telas virgens, que escritores ao redor do mundo se inspiraram a publicar livros em branco. Os leitores se multiplicaram. Crianças de dois anos passaram a ter livro de cabeceira. Os livros didáticos tornaram-se mais baratos e podiam ser lidos mesmo na inexistência de luz.
- Filho, o que você está fazendo aí no escuro?
- Estudando, mãe.
Músicas silenciosas foram compostas. As pessoas ligavam seus aparelhos e ficavam ouvindo o silêncio. Silenciavam juntas de cor.
O que se seguiu você já sabe. Filmes sem imagem, peças sem atores, escultura sem matéria – ou só matéria, sem escultura.
Isso sem falar das intervenções em outras áreas: relógio sem ponteiro, computador sem tecla, mula sem cabeça, mala sem alça...
Na busca pela síntese o artista havia encontrado o nada. O artista, nas parcimônias do exibicionismo, exibia suas modéstias.

Não foi nos corredores do Louvre que isso me ocorreu, mas enquanto eu assistia a um jogo do Barcelona. Ao ver algumas jogadas de Neymar – ele mesmo -, percebi que, entre chutes e pontapés, ele encontrou o equilíbrio do próprio futebol. E algumas participações desse menino nos fazem entender o mais e o menos da arte.
Neymar já não dribla três vezes na própria defesa para voltar ao mesmo lugar. O drible sempre produz algum efeito de progressão, o movimento em direção ao objetivo.
No futebol, a arte pela arte não é arte. É preciso aquele último toque de pincel que transforma a paisagem. É preciso a revelação dramática da última página, a morte do protagonista, o derradeiro golpe de cinzel para introduzir vida à pedra. É preciso o gol.
O poeta pode escolher entre "seios de Afrodite, molhados de sol" ou "Afrodite, sombras e vales da tarde" e estará dizendo a mesma coisa, mas fará bem em escolher a segunda.

O mesmo faz Neymar. Não ao preferir vales a seios, mas ao desarmar de calcanhar e fazer gol de bicicleta. O efeito seria o mesmo de um carrinho e um bico, mas então já não será futebol. Resultado por resultado eu jogo no bicho.
Cedo ou tarde vão compará-lo a deus e a semideuses, Pelé e Maradonas, mas para que mexer com essas forças? Nem deus, nem semideus, Neymar é da categoria dos anjos atrevidos.
Naquele tecido frágil (desculpe - tentativa infeliz de melhorar linha tênue), naquela fronteira entre excessos e ausências, Neymar encontra o improviso num segundo, a dificuldade como inspiração.
Ele descobre cedo aquilo que o artista pode nunca encontrar – e então não será artista. Ele descobre como bailar sobre aquele tecido fino, sobre aquele lugar comum entre a firula e a arte. 
Num minimalismo exuberante, Neymar traz aos estádios o silêncio de Oludom.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DOMINGOS DE NICOLAU FICO, CAMISETA LISTRADA E MINISSAIA


 

(Texto deste blogueiro vencedor do concurso Meu Jogo Inesquecível do blog O Caroço. Ouça também o podcast aqui.)



Muitas tardes de domingo da minha infância foram passadas nas arquibancadas do Estádio Nicolau Fico, do glorioso Farroupilha de Pelotas. Compareciam minha mãe e meu pai, além de tios e tias acompanhados dos respectivos filhos. Um dos meus primos até jogava no gol.

Nas arquibancadas quase vazias, famílias faziam piquenique e as mulheres demonstravam mais habilidade com as agulhas de tricô do que os briosos atletas tricolores com a bola. Alguns freqüentadores deitavam no concreto da arquibancada e cobriam o rosto com a edição dominical do Diário Popular – uns para tirar uma soneca, outros para ouvir a transmissão pelo rádio, o que sempre era mais emocionante do que assistir o jogo ao vivo. E refiro-me às duas opções.  
Eu sabia que era domingo de futebol quando minha camiseta listrada de vermelho, amarelo e verde era incluída entre as roupas que eu deveria usar. A camisa até que era bonita, mas eu preferiria vestir aquela do Mickey Mouse e assistir às matinés do Cine Fragata. Ainda hoje sinto-me frustrado por não ter assistido a “Tiros, Socos e Macarrão” – uma obra-prima do bang-bang italiano, segundo as palavras sempre confiáveis dos amigos da época.
 
O pior é que eu nem gostava de assistir futebol. Na minha opinião futebol era coisa para ser jogada, não para ser vista. O bom mesmo era correr atrás da bola o dia inteiro, deixar a pelada se estender até o cair da noite quando, então, só se saberia que a bola estava por perto ao se ouvir o plof do capotão quase vazio e molhado quicando nas ruas de terra batida da Vila Virgílio Costa. Eu voltava para casa no sétimo chamado da mãe – se não fosse a decisão da melhor de 15 – e ouvia a repreensão por agora estar também sem a unha do dedão do pé esquerdo.
Às vezes, naqueles domingos de estádio, eu abandonava por alguns minutos minha tocaia ao picolezeiro ou ao vendedor de puxa-puxas e voltava minha atenção para o gramado. Com o senso tático adquirido nas pelejas de rua, eu intimamente criticava o comportamento daqueles marmanjos em campo. O que mais me impressionava era perceber um jogador correndo lá pela ponta esquerda quando a bola estava aqui na direita. Ora, futebol deveria ser jogado onde a bola estivesse, salvo as exceções em que ela caísse no quintal da Dona Marly. Quer saber? Moço, me dá um de minissaia (que era como chamávamos o picolé metade chocolate, metade morango, o preferido de dez entre dez). E se alguém quiser alfinetar dizendo que aquela seria a óbvia preferência pelotense, apresso-me eu em dizê-lo e não se fala mais nisso.
Com a chegada da adolescência consegui abandonar aquele hábito familiar (e não me refiro a minissaia, pensei que já estivéssemos combinados; essa eu uso até hoje). O Estádio Nicolau Fico agora só era visto quando eu passava de ônibus pela Avenida Duque de Caxias. Foi se apagando da memória o velho Tricolor do Fragata, que ostentava como grande triunfo de sua história a conquista do Campeonato Gaúcho de 1935 (e ostenta ainda, embora recentes especulações insinuem que um tal de Zveiter esteja pensando em anular algumas partidas daquele campeonato).
Quando alguém me perguntava para qual time eu torcia, a resposta era Farroupilha, sem pestanejar. Mas eu também diria que era católico se indagassem a respeito de minha religião. Às vezes, para contentar o meu pai, eu lhe perguntava qual tinha sido o resultado do domingo. Do futebol, não da missa.
Foi justamente para não desapontar o velho, e um pouco porque eu sempre me sentia bem na sua companhia, que eu resolvi acompanhá-lo a um Farroupilha versus Internacional. A partida aconteceria no dia 24 de abril de 1979 e seria válida pelo Campeonato Gaúcho daquele ano.
Naquela época, ainda que em má fase, o Colorado tinha estrelas suficientes para lotar qualquer estádio do interior. Mesmo o costumeiramente vazio Nicolau Fico.
Quando chegamos já não havia lugares nas arquibancadas. Eu e meu pai ficamos em pé junto ao alambrado. O público, com o acréscimo dos torcedores do Grêmio Esportivo Brasil e do Sport Club Pelotas, gritava, cantava, agitava bandeiras multicores, exigia a parte que lhe cabia no espetáculo. Eu não participava da festa, mas sorria satisfeito ao lado de meu pai. O que eu sentia já não era mais apenas o prazer de compartilhar a alegria do Seu João, mas o reconhecimento de que poucos eventos seriam capazes de despertar aquele estado de quase-delírio, de transe festivo. Eu apenas não entendia o motivo para tal celebração.
Percebi que alguma coisa acontecia no gramado quando a torcida ergueu-se em uníssono e os fogos de artifício começaram a espocar no céu azul do domingo. Era o Grêmio Atlético Farroupilha que entrava em campo.
Uns poucos vaiavam, certamente torcedores do Brasil e do Pelotas, mas mesmo entre esses a maioria juntava-se aos gritos da torcida tricolor. Deduzi que eram movidos por um sentimento de simpatia pelo Davi que em poucos minutos estaria bravamente enfrentando o Golias na arena do Fragata. Tomado pela mesma simpatia, comecei a observar os jogadores tricolores que realizavam o aquecimento enquanto esperavam o time da capital. Meu pai, assim tão perto do gramado, informar-me-ia, sem mesóclises, o nome dos jogadores, apontando os bons de bola e os cabeças de bagre. Confesso que contei mais destes do que daqueles.
Depois de alguns minutos assistindo a chutes a gol, bobinhos e embaixadas, a torcida começou a se impacientar. Surgiu um boato de que o Inter não viria.
- São tudo estrela!
- Tão com medo!
- Minha grana de volta!
Foi então que, tendo Paulo Roberto Falcão à frente, o Internacional entrou em campo.

No ano seguinte, durante uma derrota do Inter para o Atlético Mineiro no Beira Rio, o narrador da Rádio Gaúcha Haroldo de Souza decidiria que a única maneira de definir a frustração da torcida colorada depois do quarto gol do time mineiro seria não dizer nada. E Haroldo não narraria o gol.
Pela mesma razão, mas para descrever o oposto, para retratar o frenesi que se apossou do estádio naquele domingo, eu prefiro nada dizer. Eu só posso declarar a minha perplexidade com a manifestação da torcida e contar do prazer que senti ao ver alegria de meu pai. Ele, que sempre foi tão sereno, olhava para o campo, olhava para mim e sorria, satisfeito por saber que o filho via o mesmo que ele. Se fosse apenas por aqueles momentos nos olhos azuis de meu pai, eu já teria ganho não o domingo, mas todos os dias da minha vida.
Começou o jogo. No primeiro movimento do Inter, já vi o Velho João se render com mais um sorriso: “Não vai dar, não vai ter jeito.” E foi também naquele primeiro movimento que eu compreendi tudo.
Quando Mário Sérgio, ainda lá na lateral esquerda, suavizou com o bico da chuteira um balão que veio da defesa adversária, eu compreendi porque é que Valdomiro disparou pela ponta direita, lá tão distante da bola .
Quando o vesgo Mário fez a bola cruzar os céus do Fragata, eu compreendi que ela cairia doce e precisa dois passos à frente de Valdomiro.
Quando Falcão, com a cabeça erguida, entrou pela intermediária exigindo que a bola lhe fosse passada, eu compreendi que ele a receberia e a abrandaria no peito para tocar a Jair.
E finalmente, quando o Príncipe Jajá, de primeira, enfiou o pé para guardar a bola no ângulo direito da meta tricolor, eu compreendi o que é Futebol.
O jogo acabou seis a zero para o Inter. Minha cabeça girava e eu desconfiava ter cortado no alto uma cobrança de falta de Cláudio Mineiro. Na saída do estádio, eu ainda via Mário Sérgio caminhar entre quatro adversários com a bola escondida em algum lugar inalcançável entre os pés. Eu via Falcão recuperar a bola na defesa, entregá-la a Batista no meio campo e recebê-la na área adversária. Eu via como Mauro Galvão, ainda com 17 anos, já fazia do desarme um requinte. E eu tentava imaginar o que é que o bom e velho Ênio Andrade, o Cabeção, poderia ter a dizer a toda essa gente no vestiário.
Ali, ao caminhar entre os torcedores que comentavam e recriavam os lances do jogo, eu cheguei a uma constatação: o esquadrão vermelho que eu tinha visto jogar, o esquadrão vermelho que tinha feito uma visita refinadamente mal-educada ao time pelo qual eu dizia torcer, aquele seria, dali por diante, eu querendo ou não, o time que orientaria meus passos através da paisagem-futebol.
A constatação me deixava confuso. Enquanto eu e meu pai voltávamos para casa, eu não sabia o que dizer. Ele engrandecia sem pudor as virtudes do Colorado, mas ele podia, tinha esse direito. Meu pai não deixaria de torcer pelo Tricolor do Fragata por causa de uma goleada sofrida. Não era homem de se abater por pouco e nunca seria um vira-casacas. Ele apenas admitia, esportivamente, que a diferença de forças era muito grande e que qualquer resultado que não uma goleada seria improvável.
Mas e quanto a mim? Eu sentia que estava traindo alguma coisa de minha infância. Muito mais do que isso, eu temia estar traindo meu pai. Para piorar, pergunte-me qual era o segundo time dele.
Isso mesmo.
Aquele.
O indizível.
O de azul.
O outro de Porto Alegre.
O freqüentador assíduo da segundona.
À noite assisti diversas vezes os gols na televisão. Meu pai, entre acordes do seu banjo inseparável, também assistiu, satisfeito por perceber que aquele dia que havíamos passado juntos tinha despertado alguma coisa em mim.
Comecei a acompanhar o Campeonato Gaúcho e a assistir programas esportivos. Descobri um outro fascínio, também até então incompreensível: as transmissões pelo rádio. Como no Campeonato Gaúcho os jogos do Inter e do de azul costumavam acontecer no mesmo horário, as transmissões eram simultâneas. Jogada de perigo no jogo do Inter, entrava o locutor daqui; lance importante no jogo do Indizível, o locutor chamava de lá. Eu escutava tudo no radinho de pilha, torcendo por um e secando o outro com o mesmo fervor.
Naquele ano de 1979 o Inter foi apenas terceiro colocado no Campeonato Gaúcho, ficando atrás do Esportivo de Bento Gonçalves e deixando o título em mãos desacostumadas. Isso não diminuiu em nada a minha paixão pelo time e, no mesmo ano, vi o Colorado se reabilitar e conquistar o terceiro título nacional. E não apenas isso: pela primeira vez (e única até hoje) um time sagrava-se Campeão Brasileiro invicto.
A torcida do Internacional assistiu a momentos inesquecíveis naquele campeonato: os dois gols de Chico Spina, que substituía Valdomiro na primeira partida da final contra o Vasco no Maracanã, lançado por Valdir Lima, que, por sua vez, substituía Falcão; e o gol do próprio Falcão contra o Palmeiras de Telê no Morumbi – o filho da Dona Zizi enfrentou a sola do zagueiro Beto Fuscão, mandou a bola para as redes e a torcida palmeirense para casa.
Memoráveis jogos, por certo, mas nada comparável àquele Farroupilha e Internacional assistido ao lado de meu pai.
O tempo mostrou que a culpa que eu sentia era encucação de adolescente. Meu pai via com naturalidade meu interesse pelo Inter (afinal isso não era como se eu tivesse começado a usar minissaia, por exemplo) e, junto comigo, assistiu pela TV aqueles jogos contra Vasco e Palmeiras.
O Farroupilha caiu para a segunda e depois para a terceira divisão e os dois times não mais se encontraram. Entendi que o meu pai nunca teve todo esse interesse por futebol; o que ele gostava mesmo era dos domingos. Entendi que, se eu tivesse pedido, ele teria deixado de ir ao Nicolau Fico para assistir comigo, de muito bom grado, a “Tiros, Socos e Macarrão” na matiné do Cine Fragata.
Hoje o Farroupilha está de volta à primeira divisão do Campeonato Gaúcho. Se você quer mesmo saber, quando os dois times se encontrarem novamente prefiro esperar o jogo acabar e saber o resultado final.
Quanto ao meu pai, penso que ele, de vez em quando e descalço – porque é livre -, bate uma bolinha com os anjos. Talvez, em certos domingos de sol, ele abandone o posto de solista de banjo na orquestra de harpas. Então dá uma passadinha rápida lá pelas bandas do Fragata, observa dois ou três lances do Farroupilha emoldurados por uma malha losangular do alambrado e depois vai embora. Afinal deve existir muito mais do que futebol para se ver por aí.
by José Luis Volcan