Picture by Richard Baxter |
O lampião de gás estilhaça a janela.
O lúmen da desesperança fulgura na noite e expulsa os santos imaginários de Valentim.
Lampião.
Um palmo de amebas.
Em chamas.
Na grama.
No duro chão.
Valentim nem diz amém. Ergue-se e esfrega, esfrega, esfrega os joelhos. Grama rala. Pouca chuva nestas primeiras noites de verão.
Culpa de São Pedro?
Dos santos?
Que São.
Que sejam.
Essa foi a última vez de joelhos.
E de coceira.
Amém.
Que sejam assim.
Todos Vocês.
E de coceira.
Amém.
Que sejam assim.
Todos Vocês.
As pequenas mãos, antes crispadas no derradeiro fervor, entregam-se à inércia do entorpecimento.
Os gritos dos adultos, lá dentro da casa, cessaram.
Valentim mergulha no lago fundo de seu coração menino. Desimportante. É tão imenso o mundo.
Animais noturnos, seus sibilares e grunhidos, e coaxares, e aqueles sons deles mesmos.
Pior é o silêncio da mata. Valentim olha para o céu. Por entre os galhos da figueira centenária, estrelas acenam - são crianças, e querem nascer.
Nascer para quê?
Formigamentos na fronte – quanto tempo a fronte amparada pelo áspero do caule?
O vulto do irmão mais velho aparece na janela. Emoldurado pelos caixilhos, sem a vidraça que ele mesmo quebrara, o irmão assiste a ultima insignificância de luz, os restos do lampião que se findam no pátio de terra dura.
Valentim vê o irmão dar as costas à janela e reaparecer no estreito caminho de pedra na lateral da casa.
Uma fresta se abre no coração de Valentim. Por ali uma esperança débil ameaça se infiltrar. Nem todos ignoram a criança que havia se ajoelhado pela última vez.
O irmão vem, abaixa-se sobre os restos do lampião. Com cautela e dois gravetos, ergue o ainda ardente receptáculo de gás. O rosto duro acende-se por dois segundos.
No peito de Valentim, um ínfimo de calor familiar, a promessa de adulta proteção.
Braços como apêndices frouxos ao longo do corpo, Valentim espera.
O irmão larga gravetos e lampião. Ergue-se. Encara Valentim.
O irmão larga gravetos e lampião. Ergue-se. Encara Valentim.
Então, num desprezo de movimentos, chuta o que restava da coisa incandescente. Uma risca de chamas crepita num átimo e definha, sem suspiro, lá junto à cerca de bambus.
Valentim vê o irmão mais velho voltar pelo caminho de pedra, vê o irmão desaparecer entre os umbrais da velha porta de madeira.
Valentim vê o irmão mais velho voltar pelo caminho de pedra, vê o irmão desaparecer entre os umbrais da velha porta de madeira.
Em seguida vê a mãe perguntar, irônica e amarga:
- Pensou que dava pra consertar?
- Nada mais tem conserto – responde o irmão.
O mundo de Valentim volta a se reduzir a trevas íntimas. O último esguio lapso da esperança serpenteia entre entidades e cacos. As preces morrem nas sombras e os deuses definham um a um. Como o lampião, junto à cerca.
- Pensou que dava pra consertar?
- Nada mais tem conserto – responde o irmão.
O mundo de Valentim volta a se reduzir a trevas íntimas. O último esguio lapso da esperança serpenteia entre entidades e cacos. As preces morrem nas sombras e os deuses definham um a um. Como o lampião, junto à cerca.
Sem deuses e lampiões, anoitece de vez nos estábulos vazios, anoitece nos mortos arrozais, também no córrego de águas serenas, também no caminho de pitangas, até no buraco do estômago.
E anoitece de vez no que restava das súplicas.
Nenhum mistério, ninguém mais a quem recorrer.
Gente e seus tantos santos para um único Deus.
E Deus não existe.
No negrume, Valentim. No negrume, Valentim, desilusão e alívio.
Ali, no lugar antes pertencente a Javé, a noite se fendeu. Para abrigar as contas de um rosário, os reinos do Pai Nosso, as graças da Virgem e a proteção dos anjos, enfia-se tudo ali, naquela fenda propícia da escuridão.
Na banda mais anoitecida daquelas trevas, exorciza-se o peso da esperança, rasgam-se evangelhos, quebram-se crucifixos e promessas.
Ali, na clareira sob a figueira, morrem aqueles enganos todos clamados por Valentim desde que o ensinaram a rezar.
Nunca mais missas de domingo, nunca mais proteções adultas, nunca mais medos compartilhados.
Porque agora, só no pequeno mundo, ele se bastará.
É só aguentar no osso do peito. Pernas embaixo, no alto uma cabeça - o bastante para caminhar.
Seis anos de idade, olhos lavados e livres, Valentim escolhe a solidão.
Um pouco mais sobre Deus:
To rezando agora pra que este blog se torne um livro....será que Valentim me ajudaria???
ResponderExcluirValentim can't help anyone. He's helpless himself. Try a publisher, love.
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