domingo, 28 de dezembro de 2014

SEMENTES - Prazer em Conhecer



Aqui em Sementes, neste país-cidade do Arquipélago de Utopia, no Pacífico Médio, o conhecimento constitui as bases da cidadania.


Univer-Cidades

Os prédios escolares cumprem função vital em Sementes. Toda a malha viária e estrutura urbana se desenvolvem ao redor das escolas e a elas se conectam.

A cidade é planejada para ser extensão da escola. Para a escola as pessoas se dirigem quando querem dialogar, deliberar ou simplesmente encontrar interlocutores para uma boa conversa.

Aprende-se em todo lugar, porque obter conhecimento é a principal forma de lazer. Nos grandes espaços para atividades, crianças, jovens e adultos manuseiam mapas, livros, computadores, telas, tintas e pincéis. Também se valem de instrumentos musicais, ferramentas de pedreiro, carpinteiro e dentista, flores, árvores, tubos de ensaio e tudo mais com o que se possa aprender.



Escola sem professores

Em Sementes não se desperdiça tempo em frente a quadros negros, não se limitam experiências a quatro paredes impessoais, não se confina  o conhecimento nas verdades de um professor.

Porque todos são alunos e professores, porque todos têm algo para transmitir a alguém.

Orientadores circulam entre os grupos, sugerem fontes de pesquisa, promovem contatos, estimulam a interação e a criação de redes de conhecimento. Com frequência promovem debates e propõem questionamentos.


Conhecimento Intelectual e Corporal

Trabalho intelectual e trabalho manual são igualmente importantes. Em Sementes ninguém conhece a frase “se você não estudar, vai virar gari”.
Gari e médico têm o mesmo valor. Se o primeiro cruzar os braços, não há médico que contenha os danos à saúde pública.

Para ser médico é preciso estudo específico, mas é comum que garis deem palestras em cursos de medicina – normalmente sobre profilaxia.

(Garis também funcionam como agentes de saúde. Não apenas recolhem o lixo, mas orientam a respeito de reciclagem e do melhor aproveitamento de alimentos, alertam sobre os males do desperdício e do consumo irresponsável).



A Escolha da Profissão

Ao escolher um ofício, o único guia é a vocação, a única tutela é o desejo.

Como a divisão da riqueza se dá equanimente entre capital e trabalho e entre todas as profissões, o salário nunca será impeditivo para a consumação de talentos – tampouco servirá de estímulo. Dinheiro simplesmente não entra nessa conta.

A ideia de competição não faz sentido em Sementes. Todos entendem, desde cedo, que o bem comum e o bem individual estão interligados, entendem que cooperação é o caminho mais sábio a ser percorrido.



Auto-suficiência

O mesmo valor que se dá à cooperação é concedido à auto-suficiência.

Todos desejam aprender a costurar, cozinhar, consertar motores, construir casas, cortar cabelos, plantar...

É comum que se tenha várias especialidades. Alguém pode ser jardineiro, carpinteiro cirurgião e babá. E ainda fazer poesia nas horas vagas.



Debates

As discussões não visam sacramentar o que é certo ou errado. Não existem pontos de vista estáticos. No foco está a descoberta, a satisfação em encontrar sentido em opiniões conflitantes.

Aqui em Sementes, conceitos se entrelaçam porque é sempre preciso ultrapassá-los. Aqui em Sementes, existe apenas uma certeza absoluta: o pensamento é a mola evolutiva do homem, é através dele que se vai além do conceito aprendido.

Não se busca erudição, mas conhecimento prático do que já foi dito, escrito ou provado. Somente assim será possível dizer diferente, escrever o novo e apresentar as novas provas de uma nova realidade.



Ensino Religioso

Não existem templos em Sementes. Nem padres, nem pastores, nem guias ou mestres espirituais. O homem de Sementes não precisa de intermediários para interpretar escrituras, relatos e experiências.

Aprendem-se a história, os dogmas e preceitos de todas as religiões.

Tudo pode ser discutido, não existem assuntos tabus. Assim, religião é motivo para longos debates.

Considera-se, em Sementes, que o cérebro humano em sua conformação atual é insuficiente para assimilar as delicadas estruturas que se manifestam além da palavra e do raciocínio lógico.

Por isso, religiosos e agnósticos, crentes e ateus esmeram-se em encontrar o maior número de perguntas, uma vez que respostas são mutáveis, relativas e, em muitos casos, limitantes.

Alguns procuram experiências místicas e dizem encontrar respostas, mas respostas são sempre consideradas individuais.

Meditação (dissociada de qualquer culto) é prática rotineira e representa o eixo de uma máxima aplicada em Sementes: A serenidade é mais sábia do que a coragem.

No geral, tende-se a acreditar que Deus é um infinito conjunto de frequências. O bem-estar e a serenidade apenas serão encontrados se estivermos em sintonia com as frequências do bem (amor, caridade, compaixão).



Ano Letivo, Exames, Níveis...

Estuda-se durante a vida inteira. Assim, não há necessidade que se estabeleçam níveis.

Não há exames - o aluno é quem precisa estar satisfeito e sentir-se seguro com o próprio rendimento.

Idade não é parâmetro. Não há pressa. Aos orientadores cabe a tarefa de ajudar com o próximo passo, nunca a tarefa de introduzir precocemente estudos mais complexos.


Filosofia e Imaginação em Tempo Integral

Problemas cotidianos são discutidos sob a ótica filosófica, enfatizam-se as questões éticas da relação entre os homens e destes com o meio ambiente.

Valorizam-se os insistentes por quês das crianças. Imaginação e senso crítico são encorajados desde os primeiros textos. Exagerando um pouquinho:

- Vovô viu a uva.
- E a uva? A uva viu o vovô? Como é o vovô que a uva viu?

Elogios a progressos nos estudos não são recomendáveis. Elogios apenas estimulam a vaidade -  e vaidade intelectual se equivale à ignorância em Sementes. Repete-se ad infinitum a máxima de Sócrates: “Só sei que nada sei”.

A ideia é participar da alegria de quem aprende, enfatizar o prazer do conhecimento e exibir as portas que se abrem para o novo.



Interpretação de Textos - Uma Rotina

A partir da aquisição de certa capacidade de interpretação de textos, algumas perguntas tornam-se rotina:

Há algo que o autor não expressa no texto, mas que pode ser lido nas entrelinhas?

Por que o autor escreveu o que escreveu? Teria ele algum interesse pessoal / político / social?

O autor está realmente dizendo o que parece dizer? Ou usa ironia para dizer o contrário do que na verdade pensa?

Quais são os outros trabalhos do autor? Apresentam coerência quando comparados? É preciso que sejamos coerentes?

Pode-se confiar em eventuais dados apresentados? O autor cita fontes?

A quem se dirige o texto?

Quantas frases resumiriam o texto? Uma? Duas? O texto pode ser resumido ou somente faz sentido com as exatas palavras do autor?

A importância que se dá à análise de textos desenvolve o senso crítico, a capacidade de ponderar, abstrair e compreender as camadas que se sobrepõem para formar um idioma.

Também por isso, dá-se grande importância ao estudo de idiomas estrangeiros. Aprender outras línguas propicia conexões cerebrais e associações que estimulam o pensamento sutil, a compreensão de que nem tudo pode ser dito e pensado quando se fala e se pensa numa língua única.



História

Aqui em Sementes, a realidade aparente não se apresenta como única realidade possível. A realidade é um tecido maleável, é possível transformá-la.

Heróis não são valorizados e não se acredita em profetas.

A história ainda está para ser feita. A história dos livros mostra (ou encobre) erros e acertos do passado - é preciso entender uns para buscar os outros.



Tempo para Estudos

Tempo não é problema em Sementes. Uma vez que consumismo é desencorajado e posses não são consideradas sinais de status, ninguém trabalha mais do que precisa para comprar ou produzir o que ninguém vai usar.



Riqueza

Todos têm necessidades básicas supridas, todos têm conforto, ninguém anseia por luxo.

A riqueza é imaterial, mas tangível. Não se discute preços, mas valores.



Quem Cresce é o Homem

Sementes plantadas, frutos colhidos, essa univer-cidade permite-nos a ousadia de crescer mais do que cresce um lugar.

Se você, por acaso, encontrar-se um dia errando por aqui, nestas ilhas do Pacífico Médio, venha conhecer Sementes.

Faça turismo, conheça nossa gente, questione, compare, desconfie. Pense. 

Ao voltar para casa, arregace as mangas, releia os clássicos, as escrituras e o manual de carpintaria.

Aprenda tricô e reconsidere a teoria da relatividade.

Mas não se demore. O tempo urge para quem ainda não cultivou a roça dos aprenderes.

Não espere pelo terreno propício ou pela perfeita estação. Plante suas próprias sementes agora e para sempre. Elas saberão suprimir as ervas daninhas da vaidade, da gula, ignorância e irreflexão.



domingo, 21 de dezembro de 2014

Esse corpo intraduzível

Painting by Spartaco Lombardo
Tabela periódica
equilibra-se
nas mãos
de meninos prodígios
Unhas inábeis
desenham
complexos
cálculos 
de testosterona

Minúsculas sílabas
lambuzadas
em néctar
A melhor parte
de todas as coisas
Beijo resina de benjoim,
o aroma somente
da cor vermelha,
porque cada cor
traz perfumes,
mas só o vermelho,
volúpias

Engendram:
mapas de saliva,
teias,
caminhos aracnídeos

Perdem-se:
no entrelaçamento dos rios,
nas redes de sofreguidão

Buscam-se:
na união de chacras
e pontos cardeais

O corpo é um país
devastado de paixão
e deleites
O corpo tem aclives,
topografia acidentada,
rocha sã
e sedimentos de ambrosia

O corpo tem lugares,
estalagmites de suores,
formações geodésicas
e visitas sensoriais

O corpo tem idiomas -
indecifráveis versos,
crua poesia,
e aquela infinita rima molhada
em dialeto de fêmea

sábado, 15 de novembro de 2014

Ainda assim, vivemos



photo by Li Wei

Tantas arriscadas
ultrapassagens
Tantos bêbados
retornos
Tantos profundos
mergulhos
Tantos turbulentos
voos
Tantas silenciosas 
ruas
Tantas corrompidas
águas
Tantos viciados
sustentos
Tantas proibidas
doses
Tantas repetidas
dores
Tantas intoleráveis
perdas
tantas esperançosas
Vidas





sábado, 1 de novembro de 2014

Saudade da Ditadura?

(O texto hoje é de  René Zamlutti do blog Cabide Mental.)


O plano era dar uns dias de folga ao blog, estou de férias etc. Mas algumas coisas simplesmente entalam na garganta da gente, e expeli-las se torna questão de saúde, se não pública, ao menos privada.
E eis que, em menos de uma semana, surgem nas redes sociais pelo menos três - sim, três! - textos remoendo "saudades da ditadura". Sintomaticamente, dos que me chegaram às mãos, um de um sujeito dos seus 50 e poucos, outro de uma pessoa entre 30 e 35, e o último - horror! - de um rapaz de menos de 20. Este, acrescido de um vídeo do ex-presidente Figueiredo (aquele que, na presidência, afirmou que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo) e do texto "saudades... Éramos felizes e não sabíamos".
E meu plano de dar férias ao blog foi para o espaço. Porque, se três gerações distintas sentem saudade da ditadura, algo está muito mais errado do que imaginávamos.
Chamemos esses três grupos, representados por esses indivíduos, respectivamente de saudosistas, idealistas e neorreaças. A nomenclatura é imperfeita, bem sei, mas servirá para fins didáticos.
O saudosista, na casa dos 50 e tantos, lembra com carinho do tempo em que não havia tanta criminalidade nem corrupção, a economia era estável (rescaldo do "milagre econômico" que já se despedia) e as domésticas sabiam seu lugar - aquele quartinho dos fundos que fazia as vezes de neosenzala. Aeroporto era coisa de gente chique, assim como automóvel. Eletrodoméstico era termômetro de caridade - gente com "consciência social" doava o liquidificador para a empregada quando comprava um novo (os mais radicais, quase comunistas, doavam videocassetes velhos).

Os idealistas nasceram entre o fim da ditadura e o início da redemocratização; amargaram as trapalhadas econômicas dos meados dos anos 80 e os primeiros tropeços democráticos dos anos 90. Gozaram de alguns privilégios dos quais se viram, na última década, subtraídos - ou, a seu ver, surrupiados.

Os neorreaças, muitos filhos de saudosistas, nada sabem da ditadura, além do pouco que ouviram nas aulas de história na escola (às quais não prestaram atenção). Sem jamais terem aberto um jornal, formaram o que chamam de "convicção política" a partir do que ouviram do papai e/ou da mamãe - ávidos leitores e assinantes da VEJA. Sentem falta de um período que não conheceram, mas que seus pais descrevem como aquele tempo em que "tudo era melhor".

Esses três grupos têm, entre si, inúmeras distinções e similaridades. Destacam-se, no entanto, duas características principais:
1) Uma inacreditavelmente estúpida confusão entre causa e efeito;
2) a defesa intransigente da tese de que "não havia corrupção" e "nenhum militar enriqueceu na presidência".
 A confusão entre causa e efeito pode ser constatada de várias maneiras. As mais comuns consistem nas afirmações de que a escola pública "tinha qualidade" durante a ditadura e de que os índices de criminalidade eram menores.
Mas foi justamente a partir dos anos 70 que as escolas públicas começaram a perder qualidade. Isso não ocorreu apenas com o achatamento dos salários dos professores (fenômeno que se intensificou a partir dos anos 80, razão pela qual muita gente, de forma equivocada, situa nessa década o início do declínio da educação no Brasil). O primeiro golpe dos militares na educação ocorreu com o deliberado projeto de eliminação do senso crítico e da consciência cidadã dos alunos, que foram substituídos, numa verdadeira lavagem cerebral, por um patriotismo de caráter extremista que substituía qualquer análise crítica da realidade brasileira (se alguém duvida, basta ir a um sebo, comprar um livro escolar de história dos anos 70 e ler o que se escrevia sobre Jango e a "revolução" que "salvou o Brasil do comunismo"). E só para lembrar, foi Samuel Johnson, e não Nelson Rodrigues, quem disse que "o patriotismo é o último refúgio do canalha". Nelson só emulou, mas ambos estavam certos.
Assim como a destruição do sistema educacional público, a catástrofe econômica dos anos 80 e o aumento da criminalidade - alguém ainda duvida que esses fenômenos estão relacionados? - foram em parte o preço do "milagre econômico" dos militares. Ou alguém acha que obras faraônicas e a proibição de entrada de produtos estrangeiros no Brasil (para "estimular a indústria interna") não cobrariam seu preço? Milagres não existem, muito menos em economia. E se, por um lado, o cenário externo contribuiu para a crise, não se pode negar que os militares contribuíram com sua carga de ignorância e ineficiência (é bem conhecida a preferência de Costa e Silva pelas palavras cruzadas a qualquer livro sobre o país que ele presidia) para o preço que o "milagre" inevitavelmente cobraria. É incontestável - até os mais conservadores admitem - que o "milagre econômico" aprofundou sobremaneira a desigualdade. Alguma relação entre desigualdade e criminalidade?
Em suma, achar que a situação do país piorou por causa da saída dos militares (e não apesar dela) revela uma imensa ignorância sobre a história brasileira e uma falta de informação abismal. É até compreensível - embora não aceitável - que saudosistas e idealistas pensem assim, com base em suas vivências empíricas. Mas os neorreaças não têm nem mesmo essa desculpa. 
Quanto à tese de que não havia corrupção na ditadura e que os militares não enriqueceram no poder, é de uma ingenuidade atroz. Deveria ser óbvia a qualquer vertebrado a diferença entre inexistência e falta de divulgação. Evidentemente, o mundo atual é muito mais transparente do que o dos anos 60-80. Além disso, achar que os militares estavam numa redoma moral, imunes ao que eles mesmos consideravam um traço cultural dos brasileiros, é de uma inocência sem par. Mais denúncias não significam necessariamente mais corrupção. Podem muito bem significar mais investigações e mais transparência. Vale lembrar que a imprensa vivia sob censura na época, o que, é claro, não acontece hoje. E corrupção não se limita a dinheiro. Corrupção, em sentido amplo, implica violar a lei, que se aplica a todos, inclusive aos governos. E nesse aspecto, nenhum governo foi mais corrupto que o militar (de resto, vale ler o livro "Como eles agiam", do historiador Carlos Fico, para se ter uma ideia do grau de corrupção - inclusive em sentido estrito - durante a ditadura).
Haveria muito mais a ser dito, dentre argumentos aparentemente mais ponderados a verdadeiros delírios (inacreditavelmente, ainda há quem acredite no risco de um "golpe comunista" no Brasil). Mas a síntese dessa história toda é: você não precisa concordar em nada com o governo atual; você pode querer um governo liberal, conservador, repressor etc. Mas você só pode lutar por um governo diferente do atual numa democracia. Ditaduras não dão espaço a visões de mundo diferentes.
Então, seja você um saudosista, um idealista ou um neorreaça, se você sente saudade da ditadura, lembre-se que você só pode lutar pela volta dela porque ela não existe mais.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ácida Matemática



Picture by Gerge Barbier

Se a realidade do agora,
e o silêncio de agora
recolhem-se
pré-bigbang,
prévio aviso,
basta dizer como flores:
- Espere,
eu já vou me levantar

Na metálica 
matemática
de minha cobertura,
desdobram-se braços
entre treliças

Restam-me:
a rispidez áspera
da tua partida,
e este gosto gasto
de gasolina e dor

sábado, 11 de outubro de 2014

Jovem, quem é você no Jogo do Bicho?


"Não confie em ninguém com mais de trinta anos
Não confie em ninguém com mais de trinta cruzeiros
O professor tem mais de trinta conselhos
Mas ele tem mais de trinta, mais de trinta
mais de trinta
Não confie em ninguém com mais de trinta ternos
Não acredite em ninguém com mais de trinta vestidos
O diretor quer mais de trinta minutos
Pra dirigir sua vida, a sua vida
A sua vida"
(Marcos Vale)


Juventude sempre foi sinônimo de rebeldia, 
de questionamento da realidade imposta, de luta contra o pensamento vigente e o comportamento padrão.

Jovens têm a coragem de repensar a realidade e rebelam-se contra a sociedade que os adultos oferecem, não seguem normas sem sentido, não aceitam idéias sem filtrar.

Jovens procuram a verdade além do que lhes dizem, além do que está escrito e mostrado, ousam anunciar que o reino todo - e não apenas o rei - está nu.

No fundo, dizem apenas o óbvio, mas o óbvio que outros foram desensinados a perceber.

O jovem contestador é aquele que não se encaixa nesses bilhões de engrenagens periféricas que giram em torno de um eixo torto chamado Consumo.

O jovem contestador não segue a bíblia do dinheiro, não idolatra o deus maior das multidões.



O Jovem Contestador e a Arte

O jovem contestador interessa-se pelo mundo e pela vida. Ele entende que a arte tem sim uma função primordial para o homem. Apenas pela arte será possível acessar aquelas realidades que lhe foram amputadas.

Manoel de Barros disse que “o poema é antes de tudo um inutensílio”. Manoel certamente tem suas desrazões para assim dizer, mas essa é a segunda vez que discordarei do poeta (a primeira foi em homem pássaro).

Discordarei, Manoel, para concordar. Porque você sabe melhor do que ninguém. Você sabe que poesia, pintura, escultura, música, dança, teatro e cinema são básicas necessidades humanas. Viver sem arte é só meio viver. Somente a arte pode expressar o que não pode ser explicado pela ciência e pela matemática.

Assim também entende o jovem contestador. É pela arte que ele entra para o mundo adulto com olhos de criança. É pela arte que que ele cresce um pouco mais do que os outros e espia por sobre os ombros da história.

O jovem contestador é aquele que ainda se lembra das realidades que podia ver até os seis anos de idade. Lembra-se que lhe disseram que suas realidades eram ilusões.


Cérebro – Uma peneira

Um homem é cego e surdo para a arte quando lhe falta o vislumbre, o lampejo da criança que, lá dentro dele, vê e ouve e sente. Esse homem mantém a criança amordaçada nos porões do adestramento, desnutrida de todos os sonhos e de toda a rebeldia. Mas é ele quem vai morrer de desespero e inanição.

Aldous Huxley dizia que o cérebro é uma espécie de peneira e que alguns têm as malhas dessas peneiras muito fechadas. Em peneira fina só passam realidades pequenas e ideias medíocres. Mediocridades e pequenezas se alojam no fundo da mente ou vão cair sobre a criança amordaçada para afogá-la em preconceitos e ideias envelhecidas.

O jovem contestador, aquele que não se conforma às penumbras adultas, abre seus braços, solta sua voz, acende a lanterna das memórias infantis e deixa que as idéias grandes e as grandes realidades rasguem a peneira toda.

O jovem contestador liberta aquela criança tagarela, aquele serzinho atrevido que enfia o palito na engrenagem e alvoroça moralismos e acomodações.


Contracultura

Ao longo da história, jovens se unem em torno de ideais compartilhados para enfiar alguns palitos no motor.

Aqueles que ousam ter olhos para o que ninguém mais vê soltam seu grito de transformação. 
Assim nasceram os movimentos de contracultura. Assim nasceram os beatniks, nasceram os hippies e nasceram os punks.


"A civilização se tornou tão complicada
Que ficou frágil como um computador
Se uma criança descobrir
O calcanhar de Aquiles
Com um só palito para o motor"
(Raulzito)


A Geração Beat

A Geração Beat iniciou-se quando jovens intelectuais, escritores e artistas da década de 50 se rebelaram contra o consumismo, contra o fanatismo anticomunista, contra o otimismo patriota do pós-guerra americano e a ausência de pensamento crítico.

Nas palavras de Jack Kerouak, o escritor mais influente daquela geração:

"A Beat Generation  foi uma visão selvagem que eu, John Clellon Holmes e Allen Ginsberg tivemos de uma geração de loucos, iluminados descolados. Uma visão que fez subitamente a América ascender e avançar, seriamente a vadiar e a pedir carona por todo lado, esfarrapada, beatificada, bonita de uma nova forma. Graciosamente feia."

Os beatniks deixaram como herança a luta pela liberação feminina e pela liberdade sexual.

Anti-materialistas, interessavam-se por estados alterados da consciência e por conhecimentos místicos.

Pergunta Kerouak:
"Quem sabe, na verdade, se o Universo não é um vasto mar de compaixão, o verdadeiro mel sagrado, debaixo desta exibição de individualismo e crueldade?"


O Movimento Hippie

Na década de 60, os hippies criaram o movimento mais influente da contracultura.

Jovens se rebelaram contra os valores então estabelecidos, contra os pensamentos e comportamentos padrões, contra a ideia de ascensão social a qualquer preço, contra as incongruências e perversidades da sociedade capitalista.

Alucinógenos, arte psicodélica e amor livre coloriram aquela geração que erguia bandeiras de Paz e Amor.

"Picture yourself in a boat on a river,
with tangerine trees and marmalade skies
Somebody calls you, you answer quite slowly
– a girl with kaleidoscope eyes"
(Beatles)

(Imagine-se em um barco em um rio,
com pés de tangerina e céus de marmelada
Alguém te chama, você responde muito lentamente
- uma menina com olhos de caleidoscópio)



O Movimento Punk

Década de 70. Os punks, assim como os hippies, eram pacifistas, mas defendiam uma atitude social e visual mais agressiva. Desprezavam a sociedade estabelecida e queriam demonstrar esse desprezo.

Com suas roupas surradas, cabelos moicanos e jaquetas com taxas e rebites, negavam-se a calar diante do fascismo, do racismo, do sexismo, do conformismo, dos modismos e dos agentes do poder.

Na política defendiam a auto-gestão, sem um governo central, sem partidos e autoridades.

Grupos como Sex Pistols e The Clash serviram de inspiração para os punks e deram voz àquele repúdio que sentiam em relação à organização social e política mundial.

"What are the reasons?
Schools are prisons
Forget the seasons
Schools are prisons
What are the reasons
for this waste of the spring?"
(Sex Pistols)

(Quais são as razões?
Escolas são prisões
Esqueçam as estações
Escolas são prisões
Quais são as razões
para este desperdício da primavera?)


O Império Contra-ataca

É claro que a maioria dos jovens não participou dos movimentos de sua época.

Por alienação ou influência dos adultos, muitos viam aqueles contestadores como folclóricos, porra-loucas, vagabundos.

Grande parte daqueles jovens contestadores acabaram assimilados pelo sistema que combatiam. Cansaram de lutar, sentiram a ausência de mais soldados na trincheira e pularam para a linha inimiga – como aliados ou prisioneiros de guerra.

Tornaram-se zumbis. Vagam por um mundo estranho, cujas leis eles não entendem, mas têm de seguir. Adotaram valores alheios e o cotidiano se arrasta em um arremedo de vida.

Porque o Sistema há muito percebeu que a melhor estratégia contra os rebeldes é absorvê-los.

Um bom exemplo são os hackers e crackers.

Expressões da cultura cyberpunk, esses jovens são contratados por grandes corporações, deixam de representar ameaça e tornam-se cordeiros nas mandíbulas insaciáveis da máquina.

Em todos os movimentos de contracultura, a tônica é sempre a mesma. Uma minoria (mas uma minoria significativa) ergue bandeiras e ousa caminhar na direção contrária.

O poder, num momento inicial, usa ferramentas de opressão para combater aquela minoria. Depois a exibe em outdoors e capas de revista, faz com que seu modo de vestir vire fashion, cool, até que toda a juventude passe a usar o mesmo uniforme, até que todos voltem a ser iguais.



Manifestações no mundo atual

E hoje? Existirá alguma minoria que percebe a marcha da manada em direção ao precipício, existirá alguma minoria que se nega a ser levada a reboque?

Será que alguns rebeldes legítimos caminham em direção contrária?

Sim, sempre há aqueles que conseguem ver.  Manifestações ainda pipocam ao redor do mundo.

Malala Yousafzay, uma adolescente de 17 anos ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 2014 por sua luta em favor da educação de meninas do Paquistão.

(Malala divide o prêmio com indiano Kailash Satyarthi. Satyarthi, ativista dos direitos das crianças de seu país, é um jovem de 60 anos.)

Mas talvez o mundo tenha se tornado complexo demais para os jovens de hoje. Há informação demais e profundidade de menos. Leem-se  títulos e manchetes, e o texto virou secundário.

Hoje o adestramento se dá mais cedo. Já nas creches começam a lhes impor comportamentos e são ensinados a seguir padrões. Exigem que seja um profissional eficiente, que saiba engraxar engrenagens cegas e enlouquecidas, que encontre um espaço cômodo na única realidade possível.

Nas escolas tornam-se robozinhos de competição. Quando saem das pseudo-universidades, são imediatamente engolidos e levados às entranhas da máquina maior.

Mas, aleluia aleluia, alguns conseguem ver. Percebem que o inimigo hoje é difuso, já não basta combater governos e burgueses.

Agora, esses poucos jovens precisam se dividir em diferentes frentes, lutar em diferentes batalhas contra um inimigo sempre diferente - e sempre igual.

Outros nem vão às ruas, mas defendem suas idéias no próprio grupo social. Procuram seguir a consciência e não recuam diante da opinião contrária e da crítica conservadora.


  
E você, jovem?  Quem é você no jogo do bicho?

Você consegue antever o precipício ali na frente?

Você procura manter abertas as malhas da mente para que grandes ideias e as grandes verdades sejam bem vindas?

Para onde você caminha? Você segue em frente?

Você engole tudo o que a grande imprensa e os populistas de plantão oferecem?

Você não duvida das verdades absolutas de seu tempo?


Você não procura saber a quem aquelas verdades absolutas interessam?

Você assimila modismos e pensa que ser rebelde é exigir um par de tênis de mil pratas, um novo boné, o mais recente smartphone?

E mesmo assim acredita em homens que usam paletó e gravata, discursos surrados e conceitos caducos?

Será que é mesmo uma boa ideia deixar para esses velhos a tarefa de mudar o mundo?



Desengonços do mesmo naipe: