O plano era dar uns dias de folga ao blog, estou de férias etc. Mas algumas coisas simplesmente entalam na garganta da gente, e expeli-las se torna questão de saúde, se não pública, ao menos privada.
E eis que, em menos de uma semana, surgem nas redes sociais pelo
menos três - sim, três! - textos remoendo "saudades da ditadura".
Sintomaticamente, dos que me chegaram às mãos, um de um sujeito dos seus
50 e poucos, outro de uma pessoa entre 30 e 35, e o último - horror! -
de um rapaz de menos de 20. Este, acrescido de um vídeo do ex-presidente
Figueiredo (aquele que, na presidência, afirmou que preferia cheiro de
cavalo a cheiro de povo) e do texto "saudades... Éramos felizes e não
sabíamos".
E meu plano de dar férias ao blog foi para o espaço. Porque, se
três gerações distintas sentem saudade da ditadura, algo está muito mais
errado do que imaginávamos.
Chamemos esses três grupos, representados por esses indivíduos,
respectivamente de saudosistas, idealistas e neorreaças. A nomenclatura é
imperfeita, bem sei, mas servirá para fins didáticos.
O saudosista, na casa dos 50 e tantos, lembra com carinho do tempo
em que não havia tanta criminalidade nem corrupção, a economia era
estável (rescaldo do "milagre econômico" que já se despedia) e as
domésticas sabiam seu lugar - aquele quartinho dos fundos que fazia as
vezes de neosenzala. Aeroporto era coisa de gente chique, assim como
automóvel. Eletrodoméstico era termômetro de caridade - gente com
"consciência social" doava o liquidificador para a empregada quando
comprava um novo (os mais radicais, quase comunistas, doavam
videocassetes velhos).
Os idealistas nasceram entre o fim da ditadura e o início da redemocratização; amargaram as trapalhadas econômicas dos meados dos anos 80 e os primeiros tropeços democráticos dos anos 90. Gozaram de alguns privilégios dos quais se viram, na última década, subtraídos - ou, a seu ver, surrupiados.
Os neorreaças, muitos filhos de saudosistas, nada sabem da ditadura, além do pouco que ouviram nas aulas de história na escola (às quais não prestaram atenção). Sem jamais terem aberto um jornal, formaram o que chamam de "convicção política" a partir do que ouviram do papai e/ou da mamãe - ávidos leitores e assinantes da VEJA. Sentem falta de um período que não conheceram, mas que seus pais descrevem como aquele tempo em que "tudo era melhor".
Esses três grupos têm, entre si, inúmeras distinções e similaridades. Destacam-se, no entanto, duas características principais:
1) Uma inacreditavelmente estúpida confusão entre causa e efeito;
2) a defesa intransigente da tese de que "não havia corrupção" e "nenhum militar enriqueceu na presidência".
A confusão entre causa e efeito pode ser constatada de várias
maneiras. As mais comuns consistem nas afirmações de que a escola
pública "tinha qualidade" durante a ditadura e de que os índices de
criminalidade eram menores.
Mas foi justamente a partir dos anos 70 que as escolas públicas
começaram a perder qualidade. Isso não ocorreu apenas com o achatamento
dos salários dos professores (fenômeno que se intensificou a partir dos
anos 80, razão pela qual muita gente, de forma equivocada, situa nessa
década o início do declínio da educação no Brasil). O primeiro golpe dos
militares na educação ocorreu com o deliberado projeto de eliminação do
senso crítico e da consciência cidadã dos alunos, que foram
substituídos, numa verdadeira lavagem cerebral, por um patriotismo de
caráter extremista que substituía qualquer análise crítica da realidade
brasileira (se alguém duvida, basta ir a um sebo, comprar um livro
escolar de história dos anos 70 e ler o que se escrevia sobre Jango e a
"revolução" que "salvou o Brasil do comunismo"). E só para lembrar, foi
Samuel Johnson, e não Nelson Rodrigues, quem disse que "o patriotismo é o
último refúgio do canalha". Nelson só emulou, mas ambos estavam certos.
Assim como a destruição do sistema educacional público, a
catástrofe econômica dos anos 80 e o aumento da criminalidade - alguém
ainda duvida que esses fenômenos estão relacionados? - foram em parte o
preço do "milagre econômico" dos militares. Ou alguém acha que obras
faraônicas e a proibição de entrada de produtos estrangeiros no Brasil
(para "estimular a indústria interna") não cobrariam seu preço? Milagres
não existem, muito menos em economia. E se, por um lado, o cenário
externo contribuiu para a crise, não se pode negar que os militares
contribuíram com sua carga de ignorância e ineficiência (é bem conhecida
a preferência de Costa e Silva pelas palavras cruzadas a qualquer livro
sobre o país que ele presidia) para o preço que o "milagre"
inevitavelmente cobraria. É incontestável - até os mais conservadores
admitem - que o "milagre econômico" aprofundou sobremaneira a
desigualdade. Alguma relação entre desigualdade e criminalidade?
Em suma, achar que a situação do país piorou por causa da saída dos
militares (e não apesar dela) revela uma imensa ignorância sobre a
história brasileira e uma falta de informação abismal. É até
compreensível - embora não aceitável - que saudosistas e idealistas
pensem assim, com base em suas vivências empíricas. Mas os neorreaças
não têm nem mesmo essa desculpa.
Quanto à tese de que não havia corrupção na ditadura e que os
militares não enriqueceram no poder, é de uma ingenuidade atroz. Deveria
ser óbvia a qualquer vertebrado a diferença entre inexistência e falta
de divulgação. Evidentemente, o mundo atual é muito mais transparente do
que o dos anos 60-80. Além disso, achar que os militares estavam numa
redoma moral, imunes ao que eles mesmos consideravam um traço cultural
dos brasileiros, é de uma inocência sem par. Mais denúncias não
significam necessariamente mais corrupção. Podem muito bem significar
mais investigações e mais transparência. Vale lembrar que a imprensa
vivia sob censura na época, o que, é claro, não acontece hoje. E
corrupção não se limita a dinheiro. Corrupção, em sentido amplo, implica
violar a lei, que se aplica a todos, inclusive aos governos. E nesse
aspecto, nenhum governo foi mais corrupto que o militar (de resto, vale
ler o livro "Como eles agiam", do historiador Carlos Fico, para se ter
uma ideia do grau de corrupção - inclusive em sentido estrito - durante a
ditadura).
Haveria muito mais a ser dito, dentre argumentos aparentemente mais
ponderados a verdadeiros delírios (inacreditavelmente, ainda há quem
acredite no risco de um "golpe comunista" no Brasil). Mas a síntese
dessa história toda é: você não precisa concordar em nada com o governo
atual; você pode querer um governo liberal, conservador, repressor etc.
Mas você só pode lutar por um governo diferente do atual numa
democracia. Ditaduras não dão espaço a visões de mundo diferentes.
Então, seja você um saudosista, um idealista ou um neorreaça, se
você sente saudade da ditadura, lembre-se que você só pode lutar pela
volta dela porque ela não existe mais.
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