segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DOMINGOS DE NICOLAU FICO, CAMISETA LISTRADA E MINISSAIA


 

(Texto deste blogueiro vencedor do concurso Meu Jogo Inesquecível do blog O Caroço. Ouça também o podcast aqui.)



Muitas tardes de domingo da minha infância foram passadas nas arquibancadas do Estádio Nicolau Fico, do glorioso Farroupilha de Pelotas. Compareciam minha mãe e meu pai, além de tios e tias acompanhados dos respectivos filhos. Um dos meus primos até jogava no gol.

Nas arquibancadas quase vazias, famílias faziam piquenique e as mulheres demonstravam mais habilidade com as agulhas de tricô do que os briosos atletas tricolores com a bola. Alguns freqüentadores deitavam no concreto da arquibancada e cobriam o rosto com a edição dominical do Diário Popular – uns para tirar uma soneca, outros para ouvir a transmissão pelo rádio, o que sempre era mais emocionante do que assistir o jogo ao vivo. E refiro-me às duas opções.  
Eu sabia que era domingo de futebol quando minha camiseta listrada de vermelho, amarelo e verde era incluída entre as roupas que eu deveria usar. A camisa até que era bonita, mas eu preferiria vestir aquela do Mickey Mouse e assistir às matinés do Cine Fragata. Ainda hoje sinto-me frustrado por não ter assistido a “Tiros, Socos e Macarrão” – uma obra-prima do bang-bang italiano, segundo as palavras sempre confiáveis dos amigos da época.
 
O pior é que eu nem gostava de assistir futebol. Na minha opinião futebol era coisa para ser jogada, não para ser vista. O bom mesmo era correr atrás da bola o dia inteiro, deixar a pelada se estender até o cair da noite quando, então, só se saberia que a bola estava por perto ao se ouvir o plof do capotão quase vazio e molhado quicando nas ruas de terra batida da Vila Virgílio Costa. Eu voltava para casa no sétimo chamado da mãe – se não fosse a decisão da melhor de 15 – e ouvia a repreensão por agora estar também sem a unha do dedão do pé esquerdo.
Às vezes, naqueles domingos de estádio, eu abandonava por alguns minutos minha tocaia ao picolezeiro ou ao vendedor de puxa-puxas e voltava minha atenção para o gramado. Com o senso tático adquirido nas pelejas de rua, eu intimamente criticava o comportamento daqueles marmanjos em campo. O que mais me impressionava era perceber um jogador correndo lá pela ponta esquerda quando a bola estava aqui na direita. Ora, futebol deveria ser jogado onde a bola estivesse, salvo as exceções em que ela caísse no quintal da Dona Marly. Quer saber? Moço, me dá um de minissaia (que era como chamávamos o picolé metade chocolate, metade morango, o preferido de dez entre dez). E se alguém quiser alfinetar dizendo que aquela seria a óbvia preferência pelotense, apresso-me eu em dizê-lo e não se fala mais nisso.
Com a chegada da adolescência consegui abandonar aquele hábito familiar (e não me refiro a minissaia, pensei que já estivéssemos combinados; essa eu uso até hoje). O Estádio Nicolau Fico agora só era visto quando eu passava de ônibus pela Avenida Duque de Caxias. Foi se apagando da memória o velho Tricolor do Fragata, que ostentava como grande triunfo de sua história a conquista do Campeonato Gaúcho de 1935 (e ostenta ainda, embora recentes especulações insinuem que um tal de Zveiter esteja pensando em anular algumas partidas daquele campeonato).
Quando alguém me perguntava para qual time eu torcia, a resposta era Farroupilha, sem pestanejar. Mas eu também diria que era católico se indagassem a respeito de minha religião. Às vezes, para contentar o meu pai, eu lhe perguntava qual tinha sido o resultado do domingo. Do futebol, não da missa.
Foi justamente para não desapontar o velho, e um pouco porque eu sempre me sentia bem na sua companhia, que eu resolvi acompanhá-lo a um Farroupilha versus Internacional. A partida aconteceria no dia 24 de abril de 1979 e seria válida pelo Campeonato Gaúcho daquele ano.
Naquela época, ainda que em má fase, o Colorado tinha estrelas suficientes para lotar qualquer estádio do interior. Mesmo o costumeiramente vazio Nicolau Fico.
Quando chegamos já não havia lugares nas arquibancadas. Eu e meu pai ficamos em pé junto ao alambrado. O público, com o acréscimo dos torcedores do Grêmio Esportivo Brasil e do Sport Club Pelotas, gritava, cantava, agitava bandeiras multicores, exigia a parte que lhe cabia no espetáculo. Eu não participava da festa, mas sorria satisfeito ao lado de meu pai. O que eu sentia já não era mais apenas o prazer de compartilhar a alegria do Seu João, mas o reconhecimento de que poucos eventos seriam capazes de despertar aquele estado de quase-delírio, de transe festivo. Eu apenas não entendia o motivo para tal celebração.
Percebi que alguma coisa acontecia no gramado quando a torcida ergueu-se em uníssono e os fogos de artifício começaram a espocar no céu azul do domingo. Era o Grêmio Atlético Farroupilha que entrava em campo.
Uns poucos vaiavam, certamente torcedores do Brasil e do Pelotas, mas mesmo entre esses a maioria juntava-se aos gritos da torcida tricolor. Deduzi que eram movidos por um sentimento de simpatia pelo Davi que em poucos minutos estaria bravamente enfrentando o Golias na arena do Fragata. Tomado pela mesma simpatia, comecei a observar os jogadores tricolores que realizavam o aquecimento enquanto esperavam o time da capital. Meu pai, assim tão perto do gramado, informar-me-ia, sem mesóclises, o nome dos jogadores, apontando os bons de bola e os cabeças de bagre. Confesso que contei mais destes do que daqueles.
Depois de alguns minutos assistindo a chutes a gol, bobinhos e embaixadas, a torcida começou a se impacientar. Surgiu um boato de que o Inter não viria.
- São tudo estrela!
- Tão com medo!
- Minha grana de volta!
Foi então que, tendo Paulo Roberto Falcão à frente, o Internacional entrou em campo.

No ano seguinte, durante uma derrota do Inter para o Atlético Mineiro no Beira Rio, o narrador da Rádio Gaúcha Haroldo de Souza decidiria que a única maneira de definir a frustração da torcida colorada depois do quarto gol do time mineiro seria não dizer nada. E Haroldo não narraria o gol.
Pela mesma razão, mas para descrever o oposto, para retratar o frenesi que se apossou do estádio naquele domingo, eu prefiro nada dizer. Eu só posso declarar a minha perplexidade com a manifestação da torcida e contar do prazer que senti ao ver alegria de meu pai. Ele, que sempre foi tão sereno, olhava para o campo, olhava para mim e sorria, satisfeito por saber que o filho via o mesmo que ele. Se fosse apenas por aqueles momentos nos olhos azuis de meu pai, eu já teria ganho não o domingo, mas todos os dias da minha vida.
Começou o jogo. No primeiro movimento do Inter, já vi o Velho João se render com mais um sorriso: “Não vai dar, não vai ter jeito.” E foi também naquele primeiro movimento que eu compreendi tudo.
Quando Mário Sérgio, ainda lá na lateral esquerda, suavizou com o bico da chuteira um balão que veio da defesa adversária, eu compreendi porque é que Valdomiro disparou pela ponta direita, lá tão distante da bola .
Quando o vesgo Mário fez a bola cruzar os céus do Fragata, eu compreendi que ela cairia doce e precisa dois passos à frente de Valdomiro.
Quando Falcão, com a cabeça erguida, entrou pela intermediária exigindo que a bola lhe fosse passada, eu compreendi que ele a receberia e a abrandaria no peito para tocar a Jair.
E finalmente, quando o Príncipe Jajá, de primeira, enfiou o pé para guardar a bola no ângulo direito da meta tricolor, eu compreendi o que é Futebol.
O jogo acabou seis a zero para o Inter. Minha cabeça girava e eu desconfiava ter cortado no alto uma cobrança de falta de Cláudio Mineiro. Na saída do estádio, eu ainda via Mário Sérgio caminhar entre quatro adversários com a bola escondida em algum lugar inalcançável entre os pés. Eu via Falcão recuperar a bola na defesa, entregá-la a Batista no meio campo e recebê-la na área adversária. Eu via como Mauro Galvão, ainda com 17 anos, já fazia do desarme um requinte. E eu tentava imaginar o que é que o bom e velho Ênio Andrade, o Cabeção, poderia ter a dizer a toda essa gente no vestiário.
Ali, ao caminhar entre os torcedores que comentavam e recriavam os lances do jogo, eu cheguei a uma constatação: o esquadrão vermelho que eu tinha visto jogar, o esquadrão vermelho que tinha feito uma visita refinadamente mal-educada ao time pelo qual eu dizia torcer, aquele seria, dali por diante, eu querendo ou não, o time que orientaria meus passos através da paisagem-futebol.
A constatação me deixava confuso. Enquanto eu e meu pai voltávamos para casa, eu não sabia o que dizer. Ele engrandecia sem pudor as virtudes do Colorado, mas ele podia, tinha esse direito. Meu pai não deixaria de torcer pelo Tricolor do Fragata por causa de uma goleada sofrida. Não era homem de se abater por pouco e nunca seria um vira-casacas. Ele apenas admitia, esportivamente, que a diferença de forças era muito grande e que qualquer resultado que não uma goleada seria improvável.
Mas e quanto a mim? Eu sentia que estava traindo alguma coisa de minha infância. Muito mais do que isso, eu temia estar traindo meu pai. Para piorar, pergunte-me qual era o segundo time dele.
Isso mesmo.
Aquele.
O indizível.
O de azul.
O outro de Porto Alegre.
O freqüentador assíduo da segundona.
À noite assisti diversas vezes os gols na televisão. Meu pai, entre acordes do seu banjo inseparável, também assistiu, satisfeito por perceber que aquele dia que havíamos passado juntos tinha despertado alguma coisa em mim.
Comecei a acompanhar o Campeonato Gaúcho e a assistir programas esportivos. Descobri um outro fascínio, também até então incompreensível: as transmissões pelo rádio. Como no Campeonato Gaúcho os jogos do Inter e do de azul costumavam acontecer no mesmo horário, as transmissões eram simultâneas. Jogada de perigo no jogo do Inter, entrava o locutor daqui; lance importante no jogo do Indizível, o locutor chamava de lá. Eu escutava tudo no radinho de pilha, torcendo por um e secando o outro com o mesmo fervor.
Naquele ano de 1979 o Inter foi apenas terceiro colocado no Campeonato Gaúcho, ficando atrás do Esportivo de Bento Gonçalves e deixando o título em mãos desacostumadas. Isso não diminuiu em nada a minha paixão pelo time e, no mesmo ano, vi o Colorado se reabilitar e conquistar o terceiro título nacional. E não apenas isso: pela primeira vez (e única até hoje) um time sagrava-se Campeão Brasileiro invicto.
A torcida do Internacional assistiu a momentos inesquecíveis naquele campeonato: os dois gols de Chico Spina, que substituía Valdomiro na primeira partida da final contra o Vasco no Maracanã, lançado por Valdir Lima, que, por sua vez, substituía Falcão; e o gol do próprio Falcão contra o Palmeiras de Telê no Morumbi – o filho da Dona Zizi enfrentou a sola do zagueiro Beto Fuscão, mandou a bola para as redes e a torcida palmeirense para casa.
Memoráveis jogos, por certo, mas nada comparável àquele Farroupilha e Internacional assistido ao lado de meu pai.
O tempo mostrou que a culpa que eu sentia era encucação de adolescente. Meu pai via com naturalidade meu interesse pelo Inter (afinal isso não era como se eu tivesse começado a usar minissaia, por exemplo) e, junto comigo, assistiu pela TV aqueles jogos contra Vasco e Palmeiras.
O Farroupilha caiu para a segunda e depois para a terceira divisão e os dois times não mais se encontraram. Entendi que o meu pai nunca teve todo esse interesse por futebol; o que ele gostava mesmo era dos domingos. Entendi que, se eu tivesse pedido, ele teria deixado de ir ao Nicolau Fico para assistir comigo, de muito bom grado, a “Tiros, Socos e Macarrão” na matiné do Cine Fragata.
Hoje o Farroupilha está de volta à primeira divisão do Campeonato Gaúcho. Se você quer mesmo saber, quando os dois times se encontrarem novamente prefiro esperar o jogo acabar e saber o resultado final.
Quanto ao meu pai, penso que ele, de vez em quando e descalço – porque é livre -, bate uma bolinha com os anjos. Talvez, em certos domingos de sol, ele abandone o posto de solista de banjo na orquestra de harpas. Então dá uma passadinha rápida lá pelas bandas do Fragata, observa dois ou três lances do Farroupilha emoldurados por uma malha losangular do alambrado e depois vai embora. Afinal deve existir muito mais do que futebol para se ver por aí.
by José Luis Volcan