domingo, 29 de setembro de 2013

O Encontro de Jimi Hendrix com os Ratos



Se você estiver entre os sobreviventes, convido-o a percorrer as cicatrizes desta São Paulo pós-apocalipse. Aproveitemos enquanto ainda é possível escalar as vigas e pilares retorcidos sobre o entulho da Ipiranga.


Não leve crianças, não se faça acompanhar de sensíveis ou moralistas. A visão de automóveis expostos em posições obscenas - uns sobre os outros, portas abertas para uma orgia de metal – pode ferir alguns melindres.

Por detrás dos automóveis e destas estruturas desabadas, entre restos de asfalto, em uma cratera aberta na São João, os entes da noite conspiram.
É ali que se entreouvem conluios:
- Sim, somente aceitam carnívoros.
E perguntam-se, à meia-luz:
- Pra que lado é que estão recrutando vermes?
- Ali, na boca da noite. Apague os vestígios antes de entrar.

Nos labirintos subterrâneos da cidade, esconde-se um ícone sagrado, a divindade desses náufragos.


Quando visto pela primeira vez, chamaram-no Criatura de Deus. Depois, ao concluir que Deus não tinha nada a ver com aquilo, passaram a chamá-lo apenas Criatura.

Nesta noite Criatura está nas ruas. Ele acaba de sair da escadaria do metrô e acostuma-se, sem pressa, ao lusco-fosco desta desolação.


Seria possível confundi-lo com outros seres noturnos, não fosse a cauda réptil que emerge da borda do sobretudo roto e o par de olhos aquosos com pupilas verticais.

Em andrajos, Criatura arrasta a cauda escamosa e leva ao ombro uma bolsa Louise Vuitton.


(Mesmo em mundos como o de hoje, moídos pelas vorazes engrenagens do consumo, Criatura ainda avalia objetos por sua utilidade. Por isso, na Louise Vuitton, ele carrega quatro latas de leite em pó e dois pacotes de bolacha Maria.
Mas não, por óbvios motivos ninguém será indelicado o bastante para perguntar:
- Ei, Criatura! E essa bolsinha aí?)


Depois de tossir e cuspir, Criatura ergue as patas úmidas e 
acelera a esmo pelos dejetos. Como a reivindicar vida própria, a cauda treme em frenesis e serpenteia para deixar um rastro de visgo e desesperança.


Criatura conhece os subterrâneos da metrópole, o caminho das sarjetas e o fundo de todos os poços.


Consta que amou uma dançarina de cabaré em Berlim, e que na Nicarágua fumou haxixe com sandinistas e desvirtuou freiras e generais.

Criatura foi esfaqueado num beco de Nova Iorque, beijou as faces de um mafioso em Palermo e a boca de um bêbado em Katmandu. 

Os devotos, estes seres do aquém, da pré-sociedade, exultam na expectativa de segui-lo em direção à vertigem. Porque o currículo é garantia: Criatura saberá levá-los para o paraíso das degradações.

Rei das ruas, hábil dos hábeis, lábia da diplomacia, demo protetor, Criatura espera que o circulo beato de semblantes se manifeste.
- O que foi agora? – pergunta.
Cada devoto traz seu resumo de aptidões:
- Eu sei transitar por galerias e esgotos
- Eu conheço os atalhos da necrópole.
- Sou especialista em escória.
- PHD em asco-voracidade.
- Me chame de Apodrecer.

O círculo se abre. Criatura vai falar.
Ele leva dois dedos à boca e os retira em pinça.
- Alguém quer um chiclete?
Ninguém quer. Criatura abre caminho e se afasta. Depois de alguns metros, ouve a voz que se ergue do bando:
- Ei! E essa bolsinha aí?

Passo a passo, o vulto de Criatura começa a desaparecer naquelas densidades.
As portas da Golden Girls Night abrem-se e um casal sai a gargalhadas.
Hendrix se faz ouvir por dois segundos.

You better love me like it's gonna be the last time
And tell the child to bury daddy's old clothes


O casal se afasta e as portas se fecham.
A poeira sobre a rua, o silêncio sobre a poeira.
Criatura volta-se uma vez mais para aquela horda de náufragos.
Ninguém mais ergue uma bandeira esfarrapada, ninguém improvisa pedidos de socorro.
A desesperança foi finalmente assimilada.
Criatura gira sobre os calcanhares e desaparece numa fenda do asfalto.

Game over, baby.
Me dá licença que eu vou ali beijar o céu.