Eu e Adriana checávamos o visto a cada passo enquanto percorríamos o corredor que levava
a sala de bagagens do aeroporto de Londres. Os oficiais da imigração tinham procurado pêlo
em ovo frito, mas acabaram por carimbar os passaportes.
Passaportes carimbados,
a primeira batalha estava vencida.
A partir dali não sabíamos o que nos esperava no país estranho. Que aventuras nos aguardavam nos anos em que viveríamos na Inglaterra?
A partir dali não sabíamos o que nos esperava no país estranho. Que aventuras nos aguardavam nos anos em que viveríamos na Inglaterra?
Depois de passar pelos oficiais, sentíamos que a Providência
estava do nosso lado.
Repetíamos uma brincadeira particular que usávamos sempre que vencíamos ou éramos salvos de situações complicadas: passamos bem esse verão.
Já com as
bagagens, sentamos nas cadeiras do saguão do aeroporto e esperávamos por Lúcio,
primo da Adriana que mora em Londres. Ele ia nos ajudar a tomar o ônibus para
Leeds, norte da Inglaterra, nosso destino final.
Mas uma coisa me incomodava. Muito.
Depois de tantas
horas de viagem e do tormento na imigração, eu percebia que o efeito do meu
desodorante tinha ido pras cucuias com passagem só de ida.
Na verdade, eu não era o único a perceber. De todas as cadeiras do saguão de espera, as únicas
que permaneciam vagas eram aquelas posicionadas num raio de cinco metros ao
nosso redor.
Ate mesmo um
francês que se arriscou a sentar próximo exclamou “Mon Dieu” e correu em
direção aos toaletes.
Adriana
permaneceu firme, sem reclamar, sentada a apenas três cadeiras de distância.
Aquilo me comoveu. Foi ali que eu percebi o quanto ela me amava.
Lúcio, que eu
ainda não conhecia, chegou. Ele abraçou Adriana demoradamente e, mantendo uma
distância segura e dois dedos no nariz, deu-me um emocionado aperto de mão que demorou
quase um segundo.
A solução seria tomar
um banho da cintura pra cima no lavatório do banheiro.
Procurei uma camiseta limpa, joguei uma toalha no ombro e atravessei o saguão do aeroporto. Tentei agir com naturalidade - como se estivesse indo à praia, por exemplo.
Procurei uma camiseta limpa, joguei uma toalha no ombro e atravessei o saguão do aeroporto. Tentei agir com naturalidade - como se estivesse indo à praia, por exemplo.
Eu ensaboava as partes críticas, quando o funcionário encarregado do
toalete aproximou-se e começou a reclamar.
- You can’t do
that.
- Sorry – era tudo
o que eu dizia - I don’t speak English.
- You can’t do
that;
- I don’t speak…
– tentei repetir.
- You can’t do that..
- I don’t… – falei,
já indignado, procurando a toalha que eu havia pendurado em algum lugar.
O funcionário
estancou na minha frente. Impedia minha passagem. Avistei a toalha exatamente
na parede às costas do sujeito.
Estiquei-me para pegar a toalha por sobre o ombro dele. Ele não se afastou
um centímetro.
Consegui pinçar a toalha com dois dedos e a puxei. A tolha zuniu na orelha
do inglês. E não é que ele resolveu ficar ali, de braços cruzados, assistindo
enquanto eu secava os sovacos?
Terminei minha toilette, joguei a camiseta suada no lixo, vesti a outra
limpinha, desviei do cara e só não sai correndo porque ultima coisa que eu
queria era suar novamente.
Solucionado, ao menos parcialmente, o constrangedor problema, estávamos
prontos para seguir viagem para Leeds.
É estranha a sensação de quem, vindo do terceiro mundo, chega pela primeira
vez no país europeu.
Tem-se a impressão de que se deve tomar cuidado com cada movimento. É um pouco como se estivéssemos assistindo a nós mesmos. Parece que qualquer atitude pode ofender alguém ou infringir alguma lei.
Tem-se a impressão de que se deve tomar cuidado com cada movimento. É um pouco como se estivéssemos assistindo a nós mesmos. Parece que qualquer atitude pode ofender alguém ou infringir alguma lei.
Na pequena rodoviária anexa ao aeroporto, eu e Adriana fumávamos um cigarro depois de tantas horas de abstinência.
Era o primeiro que fumávamos em área aberta e ficamos olhando um para o outro
com a ultima bituca de cigarro na mão.
Não avistando nenhum lugar apropriado para depositar a bagana, vivemos
juntos aquele pequeno momento de indecisão: jogam-se cigarros no chão da
Inglaterra?
Não se jogam cigarros no chão de pais algum, então a pergunta mais
apropriada seria: iríamos presos se o fizéssemos?
Olhamos ao redor e percebemos que sim, havia pontas de cigarro no chão. Centenas, na verdade.
Com embaraço de fumantes e alívio de brasileiros, jogamos fora nossas cúmplices bitucas.
Com embaraço de fumantes e alívio de brasileiros, jogamos fora nossas cúmplices bitucas.
Depois de alguns minutos de espera, o ônibus chegou. Procedimentos de
praxe, Lúcio traduzia o que o motorista dizia. Nós sorríamos com a cordialidade
de dois bobões.
O motorista sinalizou
para que acomodássemos as malas no bagageiro. Com as mãos na cintura, ele supervisionava
enquanto eu e Adriana, ajudados por Lúcio, terminávamos de acomodar as malas.
Quando íamos
colocar a ultima, o motorista começou a gritar e a gesticular.
Não entendíamos o que estava acontecendo. Ele
andava em circulos, olhava para o céu, olhava para o relógio, olhava para nossas
bagagens, emendava duas dúzias de palavras e começava tudo de novo.
Meu Deus, que atrocidade teríamos cometido? Que grande merda teríamos feito já no nosso primeiro dia na Inglaterra para deixar o homem possesso daquele jeito? Voltei a pensar nas bitucas.
O motorista deu dois socos no fundo do compartimento de bagagens e foi só
então que entendemos que o nosso crime tinha sido colocar as malas um pouco à
direita do local destinado àquelas que seguiriam para Leeds.
Além da sensação de fragilizadade, o
desconhecimento da língua nos leva a pensar, ainda que por poucos segundos, que
não temos direito a reagir.
Na impossibilidade de falar, não ousamos nem ao menos expressar o nosso descontamento usando formas não-verbais. Mostrar a língua ou o dedo médio, por exemplo, nem nos passa pela cabeça.
Na impossibilidade de falar, não ousamos nem ao menos expressar o nosso descontamento usando formas não-verbais. Mostrar a língua ou o dedo médio, por exemplo, nem nos passa pela cabeça.
Não posso dizer com certeza, mas tenho a impressão de que chegamos mesmo a
murmurar alguma desculpa enquanto o cara pegava nossa bagagem e a jogava para o
lugar que ele considerava correto.
Era apenas o primeiro dia na Inglaterra, mas aquela já era a segunda pessoa
que eu gostaria de encontrar novamente algum tempo depois, quando já estaríamos
falando inglês.
O motorista nos apressava. Despedimo-nos de Lúcio e entramos no ônibus. Pela janela assistimos o impaciente motorista acender um cigarro e
fumar devagar.
Por fim jogou a
bituca no chão, entrou, ajeitou o espelho retrovisor e fechou a porta.
Acenamos para Lúcio.
Quatro horas e meia nos separavam de Leeds.
Em breve aconteceria a mais estranha experiência, não daquela viagem, mas da minha vida.
Em breve aconteceria a mais estranha experiência, não daquela viagem, mas da minha vida.
Essa você pode conferir aqui.
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