terça-feira, 7 de outubro de 2014

A mais estranha de todas as experiências

(Correndo o risco de perder a credibilidade, devo declarar que a experiência aqui relatada foi a única dessa natureza e deu-se exatamente como aqui se encontra.)

Continuação do post Passamos bem esse verão

“We’re going where the air is free
Tomorrow belongs to me
When you’re sad and feeling blue
Don’t just sit there feeling stressed
Take a trip on the National Express” (*)

(*) Trecho da música National Express do grupo Divine Comedy que a gravou para demonstrar, com sarcasmo, o que a National Express - a mais tradicional companhia de viação terrestre da Inglaterra - significa para os ingleses.

Londres fica para trás. No caminho que nos leva a Leeds, espera-me a mais estranha experiência, não desse dia, não dessa viagem, não desse período na Europa; no caminho que nos leva a Leeds, espera-me a mais estranha experiência de minha vida.
           
Paisagem inglesa através da janela, eu e Adriana tentamos relaxar no ônibus da National Express. Fazemos comentários triviais a respeito das peculiaridades do cenário, dos campos de ovelhas, das construções e das pequenas cidades cujos nomes não sabemos pronunciar.

(Um dia ficaremos atônitos ao sermos informados de que Knaresborough, uma bonita cidadezinha próxima a Leeds, é pronunciada mais ou menos Nesbra. Assim como acontece com tantas outras palavras inglesas, especialmente no que se refere a cidades, a grafia de Knaresborough foi sendo alterada no decorrer dos séculos. A cidade já foi escrita em aproximadamente trinta formas diferentes, começando com Chenaresburgh, passando por Cnarreb e Cnareburc, por exemplo, até chegar a simplificada grafia atual).

Entre um e outro ingênuo comentário, cansados pela viagem e principalmente pelo stress decorrente do sufoco na imigração, permitimo-nos longos hiatos de silêncio.

O Brasil é uma distância, assim como nossos antigos hábitos, os ambientes conhecidos, os amigos, a família. Não sabemos quanto tempo ficaremos na Inglaterra e não temos ideia do que nos espera.

Eu entreguei o apartamento em São Paulo e vendi o carro. Pela primeira vez na vida eu não tenho uma chave no bolso. Esse sentimento, esse estar no meio da estrada sem um lugar para voltar pesa no estômago.

Uma pergunta insistente nos acompanha: estaremos fazendo uma grande bobagem?

O ônibus para em pequenas rodoviárias ao longo da estrada. O motorista, depois de anunciar que a parada é apenas para embarque e desembarque, sai, acende um cigarro e - para desespero dos fumantes a bordo - fuma com sádico prazer.

É numa dessas pequenas rodoviárias que o fato acontece.

Eu e Adriana acabamos de trocar lugares. Agora ela senta-se junto ao corredor e eu estou à janela.

O ônibus para uma vez mais, o motorista fuma, alguns passageiros descem, outros sobem. Nos apenas observamos em silêncio.

Este é um pequeno complexo composto de lojas, lanchonetes e a rodoviária propriamente dita. Uma longa cobertura protege a fachada dos estabelecimentos e, após desenvolver um L, une essa construção à outra, ao fundo, onde se pode ver dois ônibus estacionados.

O lugar é quieto, a atmosfera é de desolação.

Lá, junto ao primeiro dos pilares que sustentam a cobertura, avisto alguém. Alto e magro, vem a passos rápidos sobre o piso de granito. Traz uma grande mochila nas costas e mantém ambas as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans.

Sinto um tremor de reconhecimento e Adriana inclina-se para observar.

A cada quatro passos o sujeito desaparece por detrás de um pilar e volta a aparecer.

Suas características gradualmente tornam-se mais nítidas. Os cabelos lisos e claros, ligeiramente longos atrás, começam a rarear na parte frontal. A testa é ampla, o nariz tem consideráveis proporções, a boca é grande, os lábios, grossos.

Mesmo sob o peso da mochila, ele faz um esforço para não se curvar. Anda de ombros encolhidos como costumam fazer aqueles que, ao manter as mãos nos bolsos, conservam os braços esticados.

Olha sempre em frente, mas quando para perto de nossa janela, exatamente sob o vértice do L da cobertura, parece um pouco perdido.

Adriana segura minha mão. Permanecemos mudos. Minha boca esta seca, sinto o suor verter rapidamente dos poros e escuto meu coração aos saltos. 

Ele está muito perto para ser confundido. Cansados sim, mas muito distantes do estágio da alucinação.

Assistimos quando ele checa alguma coisa no bilhete de passagem que retira do bolso de trás.

Parece em dúvida. Olha para o relógio várias vezes, está preocupado.

No início, quando ele surgiu lá no primeiro pilar, a sensação era apenas de familiaridade.

Depois, ao vê-lo caminhar apressado, o cabelo subindo e descendo no ritmo dos passos, uma onda gelada cresceu no estômago e desenvolveu um caminho lento em direção à garganta.

Agora que ele está bem ali, a três metros de distância, tenho a certeza que não vou mais respirar.

Adriana consegue falar, baixinho, como que temendo que ele pudesse nos escutar:

- Isso é impossível, Zé.

A mão dela aperta a minha. Desvio o olhar, fecho os olhos. Rezo para que, quando eu voltar a cabeça e olhar novamente, ele não esteja mais lá.

Mas está.

Parado.

Olha mais uma vez para o relógio.

Divide comigo um desconforto.


Sentado num banco do ônibus da National Express, na rodoviária de uma cidade inglesa da qual eu não sei o nome, eu sinto as duas mãos de Adriana apertarem a minha, eu o vejo pela janela.

Ele continua lá, conferindo a hora. Eu continuo aqui, no banco, imóvel, junto à janela.

Não há duvida.

Você já pode balançar a cabeça. Exerça sem culpas o direito ao ceticismo.

Se você está pensando: “ele não esta querendo dizer que...”

Estou sim:

O estranho lá fora sou eu.

Ele – e agora é muito difícil chamá-lo assim – pergunta algo ao motorista, que continua fumando.

O motorista responde, gesticula, mas não parece ter muita certeza do que diz. Desfaz-se do cigarro, olha mais uma vez para o sujeito parado lá fora e entra no ônibus.

Eu confesso que nem vejo a cena seguinte e somente saberei deste detalhe mais tarde, pelos lábios de Adriana. O motorista, ao entrar no ônibus, caminha pelo corredor como se procurasse alguém e para a nossa frente. Examina-me com curiosidade. Ele dá mais uma olhada para aquele parado lá fora, coça a cabeça, dá de ombros e encaminha-se a seu lugar, pronto para continuar viagem.

O motorista liga o motor e o ônibus começa a se movimentar.

Lá fora, ele, eu, o cara, sai apressado e toma a outra perna do L sob a cobertura. Adriana ergue-se num salto.

- Temos que descobrir o que é isso, Zé.

Que ninguém me pergunte porque a impeço. Talvez eu não queira descobrir o que é isso, talvez eu tema perdê-la para ele, para mim, e testemunhar o desaparecimento de Adriana, de mãos dadas comigo mesmo, nesta cidade estranha da Inglaterra.

Olho mais uma vez através da janela e o vejo, vejo-me, afastando-se-me, rapidamente. É a ultima imagem que guardo de mim.

Adriana ainda está em pé no corredor e eu percebo que estou esmagando o braço dela para impedi-la de parar o ônibus e correr atrás de mim lá fora.

O ônibus deixa a rodoviária e começa a ganhar velocidade. Então sou eu que decido me mover.

Penso que aquilo não pode ficar assim, que um acontecimento como esse deve ser investigado, que é preciso ficar frente a frente com aquele espelho e descobrir o que sai de lá.

Eu salto do banco para o corredor e corro em direção à frente do ônibus. Do outro lado do vidro que o separa dos passageiros, o motorista me encara assustado. Minha expressão deve realmente ser aterradora.

- Are you ok? – ouço sua voz surpresa e preocupada através dos orifícios do vidro divisório.

Permaneço estático, com ambas as mãos espalmadas contra a superfície de vidro. O motorista alterna o olhar varias vezes entre mim e a estrada.

- Are you ok?

Yes, I’m ok, obrigado; estou bem, thanks.

Volto para o meu lugar, devagar.

Mesmo que eu falasse inglês fluentemente o que poderia eu dizer ao motorista? Eu gastaria todo o meu vocabulário e não creio que conseguiria fazê-lo a voltar. Como convencê-lo com o argumento de que eu havia sido esquecido na rodoviária?

Mais de uma hora se passa até voltarmos a conversar. Eu não conheço a paisagem, mas algo me diz que tudo se transformou, que a árvore que eu vejo já não é a mesma que ontem podia ser vista.

Torna-se impossível evitar a enxurrada de questionamentos. Quem era aquele, o que era, o que fazia?

Eu posso desde já rejeitar qualquer hipótese relacionada a questões de sangue. A possibilidade de ter um irmão gêmeo na Europa devido a algum tipo de cisão familiar deve ser descartada – quem conhece os Volcans e sua história sabe que isso seria improvável, se não impossível.

Procuro convencer-me da existência de um sósia perfeito, mas não me parece plausível aceitar que mesmo um sósia perfeito possa ser tão perfeito.

Minha cabeça está em brasas e as idéias saltitam de lá pra cá para não queimarem os pés. A teoria dos duplos é a que mais se empenha em resistir, a que mais insiste em me enlouquecer.

Por fim, permito que a idéia venha à tona, admito que há um duplo, alguém idêntico a mim, o famigerado outro, vivendo uma outra vida em outra parte do mundo.

Começo a presumir que aquele cara, o outro, deve estar seguindo alguma lei natural que o obriga a viajar para o Brasil porque não pode se deparar comigo, o duplo dele, num mesmo espaço físico.

Ele está iniciando a viagem naquela rodoviária porque é preciso preencher o lugar vazio que deixei junto à minha família e amigos. Ele vai  tomar posse da minha vida, da qual provisoriamente eu me afastei. 

Temo pelos meus pequenos segredos guardados dentro de um livro ou de uma caixa de sapatos. Temo pelas minhas senhas e cheques. Eu sinto um dolorido ciúme do abraço de minha mãe.

Mas é preciso parar com isso, jogar um balde de água fria nas brasas da mente, sossegar estas idéias todas. Por dois segundos.

E se o ônibus da National Express foi colocado aqui para me manter numa espécie de limbo entre dois mundos, entre duas dimensões? E se esta viagem não acabasse nunca?

O ritmo das perguntas acelera-se. Adriana tenta mudar de assunto e eu insisto.

O que teria acontecido se eu tivesse descido do ônibus?

Como teríamos nos sentido frente a frente?

Na improvável hipótese de ele falar português, o que teríamos conversado?

Teríamos nos abraçado, teríamos criticado a forma do outro se vestir (o estilo era exatamente o mesmo, na verdade), teríamos tentado provar que o outro era uma farsa?

Serei eu uma farsa?
           
Felizmente o ônibus já entra na cidade de Leeds. Devagar eu vou arrancando os pensamentos a fórceps e começo a afogá-los metodicamente, um a um, na garrafa de água mineral.

É preciso voltar ao mundo dos normais. É preciso voltar a ser eu mesmo. Mas terei sido eu, algum dia, eu mesmo?



     

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente com o Facebook